Crônicas de sonho e realidade
para alguém incomum como o comum
Quando era apenas um garoto de calças curtas nunca sonhara em ser astronauta. Sonhava, entretanto, em possuir mentes...
Diferente do que se sonha, porém, a noção de realidade que partilhamos e damos como fato consumado se traduz, como tudo, numa obra transcrita por nossos simples cinco sentidos. São eles o tato, olfato, paladar, visão e audição. Isso é tudo e é muito pouco. O homem como medida de todas as coisas também é muito pouco. Mas o que entendemos das coisas e suas medidas para além do que podemos, como homens que somos, mensurar a partir do que se vê, ouve, toca, cheira ou prova? E como homens que gostaríamos de ser, tal qual num sonho, construímos um deus à nossa imagem e semelhança, à imagem e semelhança de nossos cinco sentidos hiperbolizados. Tornamos divina a capacidade de tudo ver, ouvir, tocar, cheirar e provar. Sonhamos com um além para aquém do que verdadeiramente somos e sentimos, como fosse o que se é ou sente apenas uma sombra do que se vê, ouve, toca, cheira ou prova.
Por isso nem sempre nossos cinco sentidos dão conta daquilo que sabemos. Devem ser flexionados ao limite para, sob a práxis de uma licença poética pura, levar adiante a crença no real. Caso não fosse feito tal exercício de elasticidade dissimulada dos sentidos, o que diríamos a respeito do corpo humano, por exemplo? Ele é finito, por certo. Será mesmo? Imagine então que o núcleo de uma célula já foi considerado pela ciência a menor partícula de um organismo. Até certo momento, era a única partícula que podia ser vista e, logo, a única que existia. Dividiu-se em átomos e era incrível. Depois em nêutrons, prótons e elétrons, e já se sabia o fim. Atualmente a nanodimensão já é uma realidade e o corpo humano, objeto finito, uma vez mais se decompõem na esfera do imperceptível. E isso me leva a crer que também ele, o corpo humano, pode ser um pequeno universo infinito. Invisível, inaudível, intangível, inodoro, insosso. Mas existente e real. Como um sonho.
Um famoso homem de letras disse, certa vez, que “existem mais mistérios entre o céu e a terra do que a nossa vã filosofia pode supor”. Um anônimo, como que completando seus pensamentos, sentenciou: “não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem”. O famoso e o anônimo, cada qual a seu modo, cada qual para seu público, dividiram a mesma virtude, isto é, o reconhecimento de que nada é o que parece e que nossa realidade, tal qual imaginamos, não é mais que uma pretensiosa, ainda que limitada, tentativa de explicar o inexplicável. Enquanto a realidade é uma fantasia desenvolvida a partir do que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos e provamos, a loucura define o que lhes escapa. O louco é, por natureza, um fugitivo das certezas. Seria, contudo, um fugitivo do real?
Creio que os homens sãos jamais poderiam assim se considerar caso, num dado momento da vida, não se questionaram loucos. Pois é louco todo aquele que é único e se crê aquém por estar além. Na razão de sua vida, a falta de razão do mundo. No céu dos pássaros, um firmamento para seus passos. Quantos sãos não sonham a loucura de sê-lo? E sendo o que são, para quais realidades se projetam, se entregam, estes homens sãos e salvos da fantasia?
Os vôos do homem são possíveis. Seu destino, entretanto, é o intraduzível. Os vôos dessa ave inquieta, que desafiam necessariamente nossos cinco sentidos pregados ao chão, não hão de lançá-lo longe. Ao contrário do que se pensa, levam-no tão perto do mistério que, na tentativa desesperada de organizá-lo, no recorrente auxílio ao quíntuplo sensorial, de tão perto perde a noção do todo e, de todo, perde a noção de tudo. Mas continua a tentar. Continua a tentar decifrar. E continua a tentar decifrar com uma peça única de quebra-cabeça. E continua, para todo o sempre, com aquela única peça na mão, sabendo, porém, que detém uma prova.
E o que ela prova, única e exclusivamente, é que não há jeito de decifrá-la. Não há como descrevê-la. Não há como tocá-la. Não há como traduzi-la. Mas há, certamente, como senti-la. Há, por suposto, que mergulhar. Há, sempre há, que absorvê-la. E isso basta. Não ter certeza. Aguardar a próxima vez. Sempre e sempre, com a única peça na mão. A prova absoluta da incerteza e da grandiosidade de se saber pequeno, da possibilidade de sonhar, levantar vôo e pisar no firmamento.
Quando eu era apenas um garoto de calças curtas, nunca sonhei em ser astronauta. Sonhava, entretanto, em possuir mentes...
Quem há de dizer então o que é realidade? Seria aquela fantasia apegada e limitada pelos cinco sentidos? Ou aquela que os transcende? Pelo sonho se infere o real, ou, ao contrário, é do real que se alimenta o sonhador? Que possuem em comum, afinal, o homem dos sonhos e o homem que sonha? Tudo que sei a respeito disso é que nunca possuí mente alguma que não a minha própria. E ela possui seu mistério, que me possui e me leva a querer possuí-lo. No final, só tenho uma peça invisível, inaudível, intangível, inodora e insossa.
Se a realidade é o chão em que piso e corro, meu destino invariavelmente é me ver detido ante o choque da queda. Mas se a realidade é o que vejo do alto de meu vôo, então, também cairei. Porém, ao contrário da interrupção abrupta do tombo veloz, a queda que precede o vôo também vê-se precedida da tentativa inata de planar, e assim contemplar, na confusão do desespero, os últimos momentos do salto.
Os astronautas não caem. Levitam perpetuamente ao sabor do espaço e de sua gravidade anulada. Não voltam. Não contam. Não entendem. Eu, nunca quis ser astronauta. Queria mesmo possuir mentes...
A vida, entendo, é uma fantasia sedimentada na fábula da certeza. E se assim se faz, há que se tornar mais bela, ainda que isso importe em ignorá-la. Há que se tornar mais vida, ainda que isso importe em sonhá-la. Há que se tornar mais real, ainda que isso importe em fantasiá-la. Há de ser mais, ainda que isso importe de menos. E eram os deuses astronautas ou alcalóides, meu caro?
Eu nunca quis ser astronauta. Mas sempre sonhei em ser Deus. E sonho tão impetuosamente que chego a acreditar ser eu o sonho de outrem. Esse, que me sonha, produz, ao me sonhar, seu eu fantasioso. Da mesma forma, eu que sou bem menos do que sonho ser, sonho com esse eu melhor. E esse eu melhor também sonha com outro, que sonha com outro, e assim, por meio de sonhos sucessivos e infinitos de um mesmo “eu”, sonhado cada vez mais alto, eis que, em derradeira realidade, então, me torno Deus. E quando por mim alcanço o todo, e só por mim sinto que ele existe, eu sonho, na minha realidade, a fantasia de ser pequeno. E misturado aos outros pequenos, guardo junto ao peito o segredo desse sonho, que sonho em cinco sentidos, com pés fincados ao chão, só para evitar que a vida se passe de forma invisível, inaudível, intangível, inodora e insossa.
para alguém incomum como o comum
Quando era apenas um garoto de calças curtas nunca sonhara em ser astronauta. Sonhava, entretanto, em possuir mentes...
Diferente do que se sonha, porém, a noção de realidade que partilhamos e damos como fato consumado se traduz, como tudo, numa obra transcrita por nossos simples cinco sentidos. São eles o tato, olfato, paladar, visão e audição. Isso é tudo e é muito pouco. O homem como medida de todas as coisas também é muito pouco. Mas o que entendemos das coisas e suas medidas para além do que podemos, como homens que somos, mensurar a partir do que se vê, ouve, toca, cheira ou prova? E como homens que gostaríamos de ser, tal qual num sonho, construímos um deus à nossa imagem e semelhança, à imagem e semelhança de nossos cinco sentidos hiperbolizados. Tornamos divina a capacidade de tudo ver, ouvir, tocar, cheirar e provar. Sonhamos com um além para aquém do que verdadeiramente somos e sentimos, como fosse o que se é ou sente apenas uma sombra do que se vê, ouve, toca, cheira ou prova.
Por isso nem sempre nossos cinco sentidos dão conta daquilo que sabemos. Devem ser flexionados ao limite para, sob a práxis de uma licença poética pura, levar adiante a crença no real. Caso não fosse feito tal exercício de elasticidade dissimulada dos sentidos, o que diríamos a respeito do corpo humano, por exemplo? Ele é finito, por certo. Será mesmo? Imagine então que o núcleo de uma célula já foi considerado pela ciência a menor partícula de um organismo. Até certo momento, era a única partícula que podia ser vista e, logo, a única que existia. Dividiu-se em átomos e era incrível. Depois em nêutrons, prótons e elétrons, e já se sabia o fim. Atualmente a nanodimensão já é uma realidade e o corpo humano, objeto finito, uma vez mais se decompõem na esfera do imperceptível. E isso me leva a crer que também ele, o corpo humano, pode ser um pequeno universo infinito. Invisível, inaudível, intangível, inodoro, insosso. Mas existente e real. Como um sonho.
Um famoso homem de letras disse, certa vez, que “existem mais mistérios entre o céu e a terra do que a nossa vã filosofia pode supor”. Um anônimo, como que completando seus pensamentos, sentenciou: “não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem”. O famoso e o anônimo, cada qual a seu modo, cada qual para seu público, dividiram a mesma virtude, isto é, o reconhecimento de que nada é o que parece e que nossa realidade, tal qual imaginamos, não é mais que uma pretensiosa, ainda que limitada, tentativa de explicar o inexplicável. Enquanto a realidade é uma fantasia desenvolvida a partir do que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos e provamos, a loucura define o que lhes escapa. O louco é, por natureza, um fugitivo das certezas. Seria, contudo, um fugitivo do real?
Creio que os homens sãos jamais poderiam assim se considerar caso, num dado momento da vida, não se questionaram loucos. Pois é louco todo aquele que é único e se crê aquém por estar além. Na razão de sua vida, a falta de razão do mundo. No céu dos pássaros, um firmamento para seus passos. Quantos sãos não sonham a loucura de sê-lo? E sendo o que são, para quais realidades se projetam, se entregam, estes homens sãos e salvos da fantasia?
Os vôos do homem são possíveis. Seu destino, entretanto, é o intraduzível. Os vôos dessa ave inquieta, que desafiam necessariamente nossos cinco sentidos pregados ao chão, não hão de lançá-lo longe. Ao contrário do que se pensa, levam-no tão perto do mistério que, na tentativa desesperada de organizá-lo, no recorrente auxílio ao quíntuplo sensorial, de tão perto perde a noção do todo e, de todo, perde a noção de tudo. Mas continua a tentar. Continua a tentar decifrar. E continua a tentar decifrar com uma peça única de quebra-cabeça. E continua, para todo o sempre, com aquela única peça na mão, sabendo, porém, que detém uma prova.
E o que ela prova, única e exclusivamente, é que não há jeito de decifrá-la. Não há como descrevê-la. Não há como tocá-la. Não há como traduzi-la. Mas há, certamente, como senti-la. Há, por suposto, que mergulhar. Há, sempre há, que absorvê-la. E isso basta. Não ter certeza. Aguardar a próxima vez. Sempre e sempre, com a única peça na mão. A prova absoluta da incerteza e da grandiosidade de se saber pequeno, da possibilidade de sonhar, levantar vôo e pisar no firmamento.
Quando eu era apenas um garoto de calças curtas, nunca sonhei em ser astronauta. Sonhava, entretanto, em possuir mentes...
Quem há de dizer então o que é realidade? Seria aquela fantasia apegada e limitada pelos cinco sentidos? Ou aquela que os transcende? Pelo sonho se infere o real, ou, ao contrário, é do real que se alimenta o sonhador? Que possuem em comum, afinal, o homem dos sonhos e o homem que sonha? Tudo que sei a respeito disso é que nunca possuí mente alguma que não a minha própria. E ela possui seu mistério, que me possui e me leva a querer possuí-lo. No final, só tenho uma peça invisível, inaudível, intangível, inodora e insossa.
Se a realidade é o chão em que piso e corro, meu destino invariavelmente é me ver detido ante o choque da queda. Mas se a realidade é o que vejo do alto de meu vôo, então, também cairei. Porém, ao contrário da interrupção abrupta do tombo veloz, a queda que precede o vôo também vê-se precedida da tentativa inata de planar, e assim contemplar, na confusão do desespero, os últimos momentos do salto.
Os astronautas não caem. Levitam perpetuamente ao sabor do espaço e de sua gravidade anulada. Não voltam. Não contam. Não entendem. Eu, nunca quis ser astronauta. Queria mesmo possuir mentes...
A vida, entendo, é uma fantasia sedimentada na fábula da certeza. E se assim se faz, há que se tornar mais bela, ainda que isso importe em ignorá-la. Há que se tornar mais vida, ainda que isso importe em sonhá-la. Há que se tornar mais real, ainda que isso importe em fantasiá-la. Há de ser mais, ainda que isso importe de menos. E eram os deuses astronautas ou alcalóides, meu caro?
Eu nunca quis ser astronauta. Mas sempre sonhei em ser Deus. E sonho tão impetuosamente que chego a acreditar ser eu o sonho de outrem. Esse, que me sonha, produz, ao me sonhar, seu eu fantasioso. Da mesma forma, eu que sou bem menos do que sonho ser, sonho com esse eu melhor. E esse eu melhor também sonha com outro, que sonha com outro, e assim, por meio de sonhos sucessivos e infinitos de um mesmo “eu”, sonhado cada vez mais alto, eis que, em derradeira realidade, então, me torno Deus. E quando por mim alcanço o todo, e só por mim sinto que ele existe, eu sonho, na minha realidade, a fantasia de ser pequeno. E misturado aos outros pequenos, guardo junto ao peito o segredo desse sonho, que sonho em cinco sentidos, com pés fincados ao chão, só para evitar que a vida se passe de forma invisível, inaudível, intangível, inodora e insossa.
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