quinta-feira, dezembro 21, 2006



O Auto da Barca do Inferno


“O senhor é o próximo”, foi a primeira coisa que lembro ter ouvido depois de ter tomado três copos de chá de cogumelo com alguns amigos. É claro que isso tinha sido há umas treze horas atrás e não fazia idéia de como eu tinha ido parar numa clínica de regressão à vidas passadas. Tudo o que sei é que eu ainda devia estar bastante seqüelado quando perguntei “quanto é?”.

Enfim, para encurtar a história, a narrativa de minha experiência regressiva foi mais ou menos assim:“Pelo excesso de blasfêmias e de ironia produzidos ao longo de toda sua de vida, estava sendo julgado publicamente por seus atos. No entanto, como seus excessos tivessem sido, de fato, realmente excessivos para todos os cidadãos decentes daquela comunidade, sua sentença seria planejada pelo grupo de notáveis com extrema dedicação e, como logo se veria, também mórbida criatividade. Para todos aqueles que participavam de tão esperado momento, quando então o desgraçado homem finalmente seria punido por seu comportamento sociopata, havia no ar uma necessidade indomável de submetê-lo aos castigos mais cruéis que o ser humano algum dia supôs possível – ainda que o possível fosse pouco para o seu caso, de acordo com a opinião de muitos.


Como cachorros pulguentos que eram, os homens e mulheres da plebe local mantiveram-se irrequietos, coçando seus corpos purulentos de feridas ao mesmo tempo em que emitiam horrendos uivos de satisfação. Satisfeito com o sucesso de sua carreira, contudo, o réu se lamentava apenas pelo fato de não poder estar, ele mesmo, exatamente ali, junto à massa irracional, guiando seus impulsos destrutivos para um fim condizente com seu próprio prazer pessoal. Pela primeira vez durante toda sua via-crucis foi acometido de um sentimento de frustração, justamente por ter pensado o quão frutífero seria o caso de ver, no seu lugar, o bom e velho amigo Rustus. Não que lhe desejasse mal algum, tampouco queria que sofresse a pena por ele merecida. Porém, numa circunstância tão pomposa como aquela, seria absolutamente delicioso ter a oportunidade de inflamar a multidão contra o jovem e condená-lo, como tantas vezes o fez, por coisas que nunca havia realizado; enfim, apreciaria muito o fato de torná-lo um monstro para, quando a pressão sobre ele atingisse o ápice, em seguida livrar-lhe a cara às gargalhadas e pedidos de sincera desculpa. Ele então compreenderia, perdoaria e sentiria o lisonjeio único daquela homenagem, para todo o sempre gravada na antologia simbólica de suas vidas. Era assim que, geralmente, o amigo demonstrava seu amor por ele.

Praticamente incógnito, Rustus encontrava-se bem próximo do companheiro em vias de condenação. Misturado à multidão, desde cedo já embriagado, pela primeira vez parecia na dúvida a respeito do que aprontava seu camarada. Ou melhor, não sabia com precisão se tudo aquilo era, de fato, uma situação plenamente real, ou se, como gostaria de acreditar, o incidente em questão não representava mais que um dos tantos estratagemas doentios bolados pelo amigo, cujo desfecho óbvio implicaria no escárnio de alguém. Talvez ele mesmo. Deixou escapar um leve sorriso enquanto procurava um popular que pudesse lhe oferecer gratuitamente um pouco de tabaco.


Continua na próxima quinta...

2 comentários:

Anônimo disse...

Será que as pessoas acreditam que é só vc q inventa isso, ou todos sabem q é plágio. És só mais um q se apropria das idéias dos outros como se fossem suas. Estás mais pra Rod Stewart q pra Jorge Ben

Diogo Lyra disse...

Entendo...