quinta-feira, janeiro 04, 2007



Quando finalmente achou outra pessoa com fogo e tragou parte da fumaça produzida com a combustão, repassou os últimos acontecimentos que ensejaram a atual enrascada na qual se via o amigo. Lembrava bem que tudo havia começado com sua morte, isto é, a primeira delas, no caso de uma nova morte ser anunciada na sentença final. Como agora, também naquele dia ele estava presente e triste pelo infortúnio do companheiro, que morrera, segundo relatos de estranhos nunca mais vistos nestas bandas, em nome do perdão de seu povo, há muito esquecido dos deveres sagrados que tinha para com seus antigos deuses, famintos e ansiosos pelas oferendas saborosas com que foram acostumados nos mimos de outro tempo, no momento totalmente ignorados.

Não é preciso dizer que este conjunto de revelações foi mais que suficiente para alertar o radar interno de Rustus sobre a veracidade dos fatos. Seu amigo nunca fora religioso e, sobretudo, jamais arriscaria sequer arranhar o corpo por uma causa, qualquer que fosse ela. Seu dito predileto, por sinal, dizia que a medida de suas ações era o risco à integridade física. Assumia-se publicamente como covarde e, incontestavelmente, vinha obtendo um duradouro sucesso com tal estratégia. Por outro lado, sabia daquilo que os outros ignoravam, isto é, sabia que as noites dormidas do amigo se passavam numa pequena gruta das montanhas, coincidência ou não, o local onde se deixavam, há séculos e séculos atrás, as ditas oferendas sagradas, divinas, realmente, no sabor de seus temperos e frescor dos alimentos. Mesmo sabendo intuitivamente do teatro que era tudo aquilo, optou por permanecer no local em que se velava simbolicamente o corpo desaparecido, ainda mais quando soube da leitura pública de uma carta deixada pelo “mártir do povo” aos seus, mensagem que, no superlativo popular, já se equiparava aos evangelhos cristãos e, inclusive, prometia superá-los. Não perderia isso por nada.

O texto póstumo, revelado para uma multidão desconsolada e em completo silêncio, definitivamente era de autoria do amigo, dado o estilo literário por ele já bastante conhecido – ainda que a estrutura da carta, excessivamente dramática e canastrã, não fosse condizente com os escritos que geralmente desenvolvia. Soube-se certo, contudo, ao perceber o efeito produzido no público por tais palavras, que levaram ao desespero do arrependimento um povo cujos deuses, assim como o próprio povo, há muito já tinham mudado radicalmente. Para sua decepção, porém, nada mais acontecera até que findo o evento.

Por uma questão de economia das palavras, resumo que, depois de quase um ano – período em que foram tributadas aos deuses de outrora as mais incríveis iguarias, além de erguida uma estátua de bronze em homenagem ao mártir – descobriu-se tudo. Foi uma camponesa, de nome Sabinah Guergueguegue-guê de Eparrê, quem avistou, quando de sua subida à montanha para deixar novas oferendas, o corpo inerte e voluptuoso do mártir – que logo supôs-se ressuscitado. Desacordado, foi levado à cidade e examinado pelos melhores médicos, cuja conclusão desconcertante apontava para um colapso produzido pelos excessos alimentares do tal homem, mais vivo e sadio que qualquer outro num raio de quilômetros. Sempre fora um imprestável, um vagabundo, um tratante. Mas uma vez santo, esqueceram-se todos dos antecedentes que eram, na verdade, os precedentes daquele caso ultrajante.

Quando acordou já estava preso. E com fome.
Continua na próxima quinta...

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