Tendo se deslocado para outro ponto do aglomerado a fim de conseguir um pouco mais de tabaco, Rustus voltava ao conflituoso presente no qual era só mais um expectador. Ali, conseguira não só o fumo gratuito, mas também uma posição privilegiada, de onde via com perfeição o pobre amigo criminoso. Como que tomado por uma solidariedade irascível, a nublar-lhe a razão e o zelo, ofereceu-se aos berros, antes que proferida a sentença, para realizar a defesa do réu e conseguir-lhe o improvável perdão.
Presenteados e surpresos pela concessão da defesa, talvez a última chance que teriam em suas vidas para uma atuação conjunta, os dois amigos protagonizaram um dos momentos mais emocionantes da história da cidade. A bem da verdade, em respeito à justiça dos fatos, fora o jovem Rustus quem brilhara dessa vez, lembrado por todos, desde então, pela grandiloqüência de sua oratória na referida ocasião. Deixando-se falar pelo coração, sem que, no entanto, apelasse aos descabidos característicos do sentimentalismo, Rustus parecia superar os limites de sua inexperiência juvenil ao convencer, com razoável perspicácia, o povo a sua volta das virtudes que no amigo se escondiam tão bem.
De fato, durante seu pronunciamento, ao ouvir as palavras que saíam de sua boca como fossem bocejos involuntários, ele mesmo ia se convencendo a respeito da magnitude e humanismo daquele homem, injustamente acusado e, portanto, vítima dos desideratos vingativos de um povo insensível ao perdão. Lembrou a todos, inclusive, que ele mesmo se viu obrigado a trabalhar, ao longo do último ano, nos finais de semana, nas noites e nos feriados, tudo isso apenas para obter da terra o suficiente para se alimentar e ofertar o restante aos deuses supostamente insatisfeitos (e ao lembrar disso quase desistiu de raiva).
Por muitas horas os homens e mulheres do povoado discutiram o caso. Rustus, novamente em meio à multidão, aguardava com ansiedade o momento da decisão. Certo é que, se dúvidas existiam sobre a inocência do réu, para todos, no entanto, era patente a força da compaixão que lhes invadiu o corpo após o discurso de defesa. Fosse o que fosse, aquele jovem corajoso já era tido pelos seus como um homem exemplar e admirado, fato que se provava pelo tabaco que muitos lhe ofereciam de forma espontânea, sem que precisasse mais pedir. Ele era o novo herói popular e isso era uma condição quase irreversível – que se consolidaria independente do resultado obtido no julgamento.
Nem mesmo o vento se mexeu quando os notáveis voltaram com o veredicto. Até o jovem Rustus, entretido momentaneamente com a promessa de duas belíssimas irmãs em satisfazê-lo naquela noite, permaneceu imóvel no ato de leitura da sentença. Para ele, apenas duas alternativas eram possíveis: viver em glória ao lado do amigo ou viver em glória sem ele por perto. As duas irmãs, contudo, preenchiam com sua beleza e seios fartos a cabeça do jovem, enrijecida de emoção e júbilo, quando então interromperam-se as descargas cerebrais do seu pensar (que navegava pelas curvas apetitosas das duas fêmeas) em nome do esperado pronunciamento das autoridades. Vendo o amigo de pé, aguardando pela decisão mais importante de sua vida, ou do que dela ainda restava, Rustus não pôde conter sua emoção e, como o herói sensível que provara ser, verteu algumas lágrimas em nome do volumoso passado construído ao lado do réu, onde constavam anotadas as experiências intensas, porém nem sempre agradáveis, que juntos vivenciaram quase como siameses. Então ele ouviu o que disse Livio Julianellius, o juiz:
* Não percam, na próxima quinta-feira o quarto e último capítulo da novela bloguesca "O Auto da Barca do Inferno"!!!!
2 comentários:
acho que dormi no ponto
cade o capitulo 2?
Caro Sr. Anônimo, você encontrará o capítulo II clicando nos arquivos de janeiro. O primeiro saiu no final de dezembro.
Volte sempre!
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