quinta-feira, janeiro 18, 2007


"Senhoras e senhores, povo honesto e crédulo de Lariconn, escutai minhas palavras com atenção. Hoje começamos julgando um homem e terminamos por julgar dois. O primeiro, que aqui se encontra diante de vocês, é um biltre. Um verme. Suas atitudes anti-sociais e, sobretudo, anticristãs, trouxeram para este povo o signo da desconfiança e da incerteza. Por seus sortilégios demoníacos, não somente agora, mas desde há muito, a credulidade do homem de bem caiu vilipendiada e jaz inerte no coração por ele petrificado em cada um de nós, pedra esta que, por ironia do destino, voltou-se agora alocada no sapato de sua própria maldade. Tenho certeza de que todos aqui presentes, inclusive o jovem exemplar que à sua defesa se entregou com ardor e paixão, ao menos uma vez se viram vitimados pelos atos inconseqüentes e desonestos deste homem. Sua insensibilidade, portanto, foi causa não só dos prejuízos particulares de cada um, mas, especialmente, dotou a mentira de regularidade tamanha que, como sabem todos, fez-se dela o objeto natural da crença, enquanto à verdade reservou-se a plena desconfiança.

Porém, o julgamento que agora vai se encaminhando para o derradeiro final, no curso de seu exercício legal, veio a contemplar outro protagonista, cujo comportamento honrado e cristão, manifesto na essência de suas palavras, fez por ampliar nossa competência de julgar, antes restrita ao primeiro réu, também para sua pessoa. Viu-se nesse homem generoso um espírito inquebrantável, um exemplo, a bem da verdade, do que a compaixão pode trazer de positivo para a vida em sociedade. Dessa forma, como fez um homem por seu povo, pode fazê-lo, o povo, também por um único homem. E é para este jovem magnífico que devem olhar, então, quando vier a anunciar a sentença destinada ao seu sórdido amigo.

Assim, sem mais o que acrescentar, devo dizer que o réu foi considerado culpado por seus crimes. No entanto, em face das palavras que mobilizou este admirável rapaz ao defendê-lo, cuja carga emocional levou aos prantos a quase totalidade dos presentes, fazendo, com isso, irrigar de lágrimas o solo em que pisamos, decidimos, em respeito à eqüidade e bom senso, por sentença diversa da morte.

Dessa forma, em nome de Deus, concluímos pelo seguinte: ao homem sujo e degradante que se encontra de pé ao meu lado, no lugar da execução imediata programada, aplicar-se-á a pena de banimento. Será posto em um barco de pequeno porte, com uma quantidade ínfima de mantimentos, obrigado a navegar perpetuamente pelas águas tórridas do oceano na qualidade de persona non grata mundial, impedido assim de aportar em qualquer canto do planeta no qual se pise a terra firme. Ao desgraçado, contudo, reservamos um pequeno voto de compaixão, decidindo dele acatar um último desejo. Lembro somente que tal opção, por demais generosa, deu-se em virtude das virtudes de seu jovem amigo, o mais digno dos homens entre todos os demais que aqui se encontram. Em nome de sua grandiosidade, de sua fidelidade aos mistérios do bem-querer, por isso e tão somente, realizaremos o tal último desejo. Sob o testemunho da graça divina, esta decisão é irrevogável.

Por outro lado, visto que diferido e exemplar o seu caráter, chegamos também a outra sentença, dessa vez, dirigida ao jovem em questão. Nesse sentido, como é fato o avançar irrefreável da idade do Rei Quel IV e, logo, a aproximação do seu fim; como é fato, também, a ausência de herdeiro para o trono, e a confusão que isso gera quando da morte de um monarca, não chegamos a conclusão outra que não, para recompensar tanto o povo quanto o homem que os honrou, tornar pública a sua escolha como o mais novo príncipe de Lariconn. Peço então que o jovem de nome Rustus, daqui para frente Príncipe Rustus I, se aproxime para receber, sob aplausos calorosos, o cetro principesco por ninguém mais tão merecido. Desta feita, como sua primeira atribuição, deve fazer valer o último desejo do condenado. E tenho dito, em nome de Deus Nosso Senhor".

Tão perplexo quanto ovacionado, subiu ao palco o jovem Rustus para protagonizar o momento que seria o ápice de sua vida. Em meio aos gritos de contentamento e das saudações dos novos súditos, recebeu as honrarias da nobreza e fez-se príncipe daquele reino. Voltou-se, então, com lágrimas nos olhos, ao amigo. Expressou sua gratidão ao companheiro banido, reconhecendo nele a razão de seu súbito sucesso e, na dubiedade da alegria triste que sentia, concedeu-lhe um forte abraço e o direito da palavra. Ouviu-se então o anúncio de seu último desejo.

Horas depois, durante a escuridão da noite, mesmo afastado o barco por quilômetros da cidade, todo o povo de Lariconn ainda era capaz de ouvir os impropérios dirigidos por Rustus ao amigo condenado. Entretanto, bem ali no meio do oceano, o homem mais odiado de todo o reino sentia-se em paz. Afinal, de fato fora respeitado seu último desejo, a saber, o de carregar consigo para o banimento o jovem amigo e exitoso defensor, sem o qual jamais haveria de ser feliz em sua vida”.
* * *

Ao final dessa experiência insólita com vidas passadas, confesso ainda possuir a mais absoluta fé no ceticismo. No entanto, essa regressão transcendental serviu para reforçar minha regra de conduta número um, isto é, que nessa (ou em outra) vida, não existe nada mais importante do que uma amizade verdadeira...
FIM

8 comentários:

gigi disse...

Bacana, vc me achou. Nem divulgo pq não tenho saco pra postar sempre. Aparecerei pra dar uma pinta escrita por aqui.

Adorei o Pandemia tb.

Anônimo disse...

Dioguinho, seu biltre, espero você amanhã em meu aniversário.

Do contrário, ganhará um atestado de pascácio do ano!

Abraço

Diogo Lyra disse...

Preciosos jovens, agradeço as manifestações e os convido a voltar ao Fundo de Quintal Literário sempre que assim desejarem.

Unknown disse...

Oi Diogo, que ótimo ter me encontrado... gostei mto do seu blog, inteligente e sereno como vc... mto legal mesmo.
voltarei sempre. me senti em casa;
beijos

Hilaine

Diogo Lyra disse...

Graciosa jovem, este espaço está sempre à sua disposição. Muito obrigado pelas considerações generosas, tanto sobre este que vos fala (ou, ao menos, escreve) quanto em relação ao seu produto criativo, duvidoso na qualidade mas convicto na cara-de-pau.

Anônimo disse...

É, meu caro, afinal de que vale uma numerosa platéia quando tudo o que se precisa é de um amigo de verdade que aprecie o sabor ácido das tuas observações?

Diogo Lyra disse...

Singelo Rustus, na verdade na verdade mesmo, seria melhor no lugar do amigo a amiga. Mas tá valendo. É como eu mesmojá dizia, com extrema perspicácia: quem não tem NET caça com gato.

Anônimo disse...

jovem rustus? sei...