segunda-feira, fevereiro 26, 2007



O mito é o tudo que é nada, disse Fernando Pessoa. A democracia, entendida dentro de seu conceito formal-minimalista, é um mito. O mito americano da democracia se sustenta a partir desse imaginário e, ainda que persista em cambaleante fascínio, ocupa-se mais em proteger sua terra prometida de seus próprios ocupantes que de gozá-la tal qual o imaginado. Mas a liberdade de que gozam é um fato, o amor à pátria é um fato. Mas mesmo os fatos podem ser encarados sob diferentes perspectivas.

A certeza norte-americana sobre seu mito é seu parnaso e seu barroco. A identidade por eles desfrutada, no entanto, corre no sentido mais institucional que pessoal. A bandeira, o hino e o 04 de julho constituem eventos que, sem dúvidas, despertam comoção nacional. Mas é o país uma bandeira, um hino ou uma data? Ser patriótico em que consiste? Consiste em ser a máquina ou seus operários? Mas o patriotismo também é uma certeza. E é absoluta. E já prendeu muitos ingratos. E ainda prende.

O que somos e de onde viemos é uma pergunta difícil a tal ponto que não vale a pena ser feita. Mas o que um hispano-afro-americano diria? Ele tem certeza de que é hispano-afro-americano. Está escrito na carteira de motorista e por isso todos têm certeza. E a América é a terra da liberdade. E é a terra da democracia. E disso eles também têm certeza. Está escrito. Eles votam. Eles protestam com lindos cartazes de madeira. Eles constituem o paradigma da vida associativa. Human Rights Watch, Black Power, NRA, KKK.

Nas avenidas de NY, passeando pelas calçadas, qualquer um pode comprar por 8 dólares uma camiseta do FBI ou da NYPD. Em DC, é fácil achar cartões postais com o rosto róseo do presidente. Afinal, como disse Britney Spears, ícone do pop-jovem americano, “confio no presidente, pois ele vai sempre pensar no melhor para gente”. O presidente, eleito em pleito indireto, percorre alguns estados do sul e dança valsa com a primeira dama. Gente como a gente. O presidente é a democracia encarnada. E a democracia é o país encarnado. Mas o país é a encarnação de quem mesmo?

O homem percorre e sofre em seu caminho na busca pela felicidade. Mas a despeito dos escritores russos, dos filósofos, dos poetas, de Sartre, de Freud, de Marx, de Lennon, os americanos têm certeza sobre a felicidade. E por isso, ou são perdedores ou vencedores. Ou são nerds ou populares. Ou são zagueiros do time de futebol americano ou são alvos do bowlling. E é no baile de formatura que elas perdem a virgindade. Somente as que foram convidadas, pois a humilhação do ostracismo é imperdoável. Mas eles têm certeza de que sua sociedade se encontra no ápice e que por isso é preciso espalhá-la por todo o globo. Mas não entendem porque são odiados no Iraque. Nem mesmo os soldados, libertadores. Mas mesmo incertos, ocasião rara, se o fazem, fazem por seu país. Por sua bandeira. Pelos pais fundadores. Pelo mito. Que é tudo...

O mito é o tudo que é nada, disse Fernando Pessoa. A democracia é um mito no Brasil. É incompleta, é seletiva, é deturpada. Chegam a pensar alguns que nunca existiu. Alguns chegam a pensar que nunca vai existir. No Brasil, tudo vem de cima para baixo. O Brasil foi construído de cima para baixo. Mas em qual terreno esse prédio suntuoso, que desceu dos céus, se assentará? Chegam a pensar alguns que, quando descer, esmagará os de baixo. Alguns chegam a pensar que nunca descerá. Mas vive muita gente aqui embaixo. Gente demais. Mas essa gente pensa nisso? E aquela gente de cima, nunca pensa nisso?

A incerteza brasileira é seu parnaso e seu barroco. A identidade por nós desfrutada, entretanto, é muito mais pessoal que institucional. A bandeira é feia, o 07 de setembro é só um feriado. Mas o hino é lindo. E tem gente que chora, mesmo conhecendo Brasília. Mas é o país uma bandeira, uma data ou a cidade de Brasília? E ser patriótico é ser Brasília? E o jogo de futebol é patriótico? Ser patriótico é ser a máquina ou suportá-la para lhe superar, quem sabe? O patriotismo aqui é uma incerteza. E é generalizada. Mas já salvou muitos ingratos. E ainda salva.

O que somos e de onde viemos é uma pergunta difícil a tal ponto que não pode deixar de ser feita. Mas o que o Ronaldinho Gorducho diria? Ele é branco ou negro? Ou é moreno? Ou é o que é dependendo de cada um que o vê? Ele não tem certeza nenhuma além do fato de ser brasileiro. E de ser misturado. E de achar isso tão natural que nunca lhe ocorreu que alguém pudesse ter alguma certeza. Ele, sabe que é branco. Mas ele não tem certeza, a despeito do que se encontre escrito nos relatórios do IBGE. E o Brasil é a terra da desigualdade. E disso, todos temos certeza. Mas temos a certeza de que Deus é brasileiro. Mas como ter certeza, né? Cachaça pro Santo e vela para a Virgem. Nós votamos. Também. Somos o paradigma da desconfiança recíproca. Bar, Fla, CV, CPI.

Em uma barraca de camelô, comprei um boné escrito 171. No código penal, esse é o artigo que define o estelionato. Tinha também uma camiseta escrita FÉ. Em Brasília, quem não veste terno e gravata acha que todos os políticos são iguais. E queimam um boneco do presidente no dia de malhar o Judas. Afinal, como disse Gabriel Pensador, ícone do pop-jovem brasileiro, “eu matei o presidente”. O presidente, eleito diretamente, às vezes percorre alguns estados nordestinos e diz que é gente como a gente. O presidente é o sacana encarnado. E a sacanagem é o país encarnado. Mas o país é a encarnação de quem mesmo?

O homem percorre e sofre em seu caminho na busca pela felicidade. Mas a despeito dos escritores russos, dos filósofos, dos poetas, de Sartre, de Freud, de Marx, de Lennon, os brasileiros não têm certeza alguma sobre a felicidade. Mas têm certeza de que se a canoa não virar se chega lá. E cabe espaço, acreditem, para um olê-olê-olá. E é por isso que não há vencedores ou perdedores. Há o malandro. Ou choramos ou damos um jeitinho. Ou se vira jogador de futebol ou continuamos a jogar no campinho de lama. Mas quem não gosta do campinho de lama? E é no carnaval que se perde, novamente, todo ano, a virgindade. E o obscuro põe a máscara. E sempre há uma colombina. Mas nós temos a certeza de que nossa sociedade é abençoada e que por isso é preciso espalhar todo o globo por nossa sociedade. Mas não entendemos por que somos tão amados na França. Nem mesmo os sociólogos, castradores. Mas mesmo assim, incertos, temos certeza de que chegaremos lá. Por nós mesmos. Pelo mito. Que é nada...

... ou não!



10 comentários:

4rthur disse...

Que bom foi lembrar desse texto que você escreveu, e poder encará-lo num momento diferente, distanciado das linhas tocquevillianas que me eram tão caras quando fiquei de cara com a estrutura desse texto pela primeira vez : contrastes textuais sutis pra revelar contrastes gritantes entre o nosso país e aquele ao qual somos construímos à imagem e semelhança.

Se a liberdade americana é uma calça jeans surrada, e a brasileira talvez se aproximasse, no máximo, de um par de havaianas, confesso que chego ao fim do texto - talvez por causa do "ou não" - tal qual Caetano: confuso a respeito da própria identidade. Só me agarro, enfim, a um ponto: se não sabemos de onde vimos e quem somos, podemos ao menos torcer o nariz praquilo que não desejamos ser.

Samantha Abreu disse...

esse texto é inspirador... sinceramente.. além de outros adjetivos como: forte, inteligente e intrigante.
Parabéns!

Ah! e quanto à apropriação indébita: tá mais que autorizado!

um beijo, e muito obrigada por tudo!

Henrique Santos Pakkatto disse...

QUE MARAVILHOSO TEXTO!!!
A estrutura perfeita o discurso contundente e a reflexão ácida dignas dos grandes escritores.
Evoé!

Diogo Lyra disse...

Obrigado pessoal, vocês são sempre muito generosos nos elogios. A nota curiosa sobre esse texto é que ele era a "base lírica" do meu antigo projeto de tese - que jamais conseguiu ser devidamente "traduzido" para o academiquês e, portanto, foi abandonado ao léu do céu lúdico...

Anônimo disse...

Ótimo texto!
Sua análise da América e o mito da democracia, me fez lembrar de um texto de Sartre sobre "Os Americanos e Seus Mitos". Segue um trecho:
"Talvez em nenhum outro lugar você encontre tal discrepância entre povo e mito, entre vida e representação da vida. Um americano me disse em Berna: 'O problema é que somos todos consumidos pelo medo de sermos menos americanos que nossos vizinhos'. Eu aceito esta explicação: ela mostra que o americanismo não é meramente um mito que a propaganda inteligente coloca na cabeça das pessoas, mas algo que cada americano continuamente reinventa em seu cotidiano (...) A angústia do norte-americano confrontada com o americanismo é uma angústia ambivalente, como se estivesse perguntando: 'Sou americano o suficiente?'".

Diogo Lyra disse...

Ora bolas Dida, estou sorrindo de uma orelha à outra...
Obrigado por sempre trazer grandes contribuições para este quintalzinho...

Obladi-Obladá disse...

Ei, querido... só posso dizer uma parada... FANTÁSTICO!
Faço coro ao Henrique: digno dos grandes escritores!
saravá!

lavignia ocarro disse...

é tudo - ou nada - uma questão de fé.

lindo texto.

Diogo Lyra disse...

Muito obrigado mesmo galera. Esse é um daqueles textos tipicamente meio chatos e eu pensava até que ninguém iria ler!!! Que boa surpresa!!!

blah disse...

Diogo,

Teu estilo lúdico desperta em mim o poeta adormecido... Alimentas essa parte de mim mesmo, tão pouco desenvolvida no engenheiro habituado e até castrado pela estrutura lógica e matemática de pensar... Me faz sonhar, quando, às vezes, me diz tudo... Ou ainda acordar, quando, às vezes, me diz nada!

Abração amigo! Continue inspirado...

P.S. - respondi teu comentário lá no meu artigo