quinta-feira, março 22, 2007

Contos de Quinta...

De: Nestor

Para: Humanidade
(em mãos)

Meu nome é Nestor Loureiro ou simplesmente “O Velho”, como sou conhecido há pelo menos trinta anos. É assim que me chamam por aí, em todo lugar, como se a velhice me diferenciasse do resto dos homens e fizesse de seus passos enfadonhos algo mais ardente e vivo. Mas não, não há nada que me separe deles, sejam bebês molengas e barulhentos ou mesmo aqueles indivíduos mal-trapilhos e afeminados que, neste maldito século vinte e um, empunham o estandarte da juventude. Tudo o que posso atestar, como velho que sou, é que de 1910 para cá confirmam-se, para mim, já 96 primaveras neste planeta, algo que não garanto para os tais viventes mais jovens e, supostamente, mais afortunados.

Aliás, o motivo desta que é a primeira de uma série de outras missivas endereçadas à humanidade veio a nascer em agosto de 1939, no dia do meu 29ª aniversário, quando então desejei ver exterminada toda a raça humana. Desde então, sonho com o holocausto responsável pela eliminação do homo sapiens sapiens deste maravilhoso planeta e rogo para que, de fato, este desejo se realize exatamente um dia após minha partida para o além. Nada mais, nada menos.

Com o passar dos anos, no lugar da senilidade, acabei por adquirir uma clareza de pensamento impressionante. Apelideia-a carinhosamente de “verdade”. Porém, mais que esta narrativa narcisista, importa assinalar que sobre mim se abateu, no ápice de tal esclarecimento, uma convicção arrebatadora e inquebrantável sobre o término do domínio humano na Terra. E o que eu sei é o que eu sei.

Antes que alguém se pergunte sobre a concessão do pequeno interlúdio de vinte e quatro horas que precede a catástrofe vindoura, e pior, veja nele algum traço de generosa piedade, adianto-me no esclarecimento de sua necessidade e pertinência para meus planos apocalípticos. Muito embora tenha cultivado um ódio descomunal pelos advogados durante toda vida, é na mão de um deles que repousa a tarefa de tornar público o conteúdo destes papéis, no curso de vinte e quatro horas após minha morte – justamente a data que virá a ser, como acredito piamente, o último dia do homem. Por isso que, estando tão certo sobre o fim, julguei apropriado deixar um conjunto de cartas endereçadas à humanidade, onde constam, por meio de depoimentos ranzinzas e esbrajevos condizentes, as razões que justificam sua merecida extinção.

Um instante. Não sou e nem nunca fui um alguém sorumbático, cinza, penumbrial. Pressupor tais características em face deste exótico desejo de ver extintos meus co-irmãos de espécie seria um verdadeiro menosprezo à minha persona imprevisível. Pois digo que são nos dias mais belos e convidativos, quando então o planeta parece mostrar-se pronto para uma festa, que se projeta com força tectônica, do meu íntimo mais íntimo, o desejo de ver tudo acabado quando tudo já estiver acabado para mim. A depressão dos dias frios e chuvosos não passa de um clichê social reservado aos mais patéticos dos homens. Ao contrário deles, sempre me sinto excitado nestes dias, pois saio pelas ruas com o guarda-chuva aberto, procurando andar sob as marquises para então furar os guarda-chuvas daqueles sem-vergonhas que se esquecem que as marquises são prioridade dos que não dispõem de guarda-chuva...

Admito que sempre fui um solitário por opção. Contudo, por maior que seja o paradoxo desta afirmativa, isso não significa que vivi meus dias alheio ao amor e a amizade. Se por conta desta solidão me vi alijado de algo, este algo foi a total falta de entrega aos humanos. Jamais abriguei, no meu corpo e alma, verdadeiramente, a ninguém. Inclusive, posso afirmar com certa segurança e paz de espírito, nunca me envolvi com qualquer pessoa cuja cumplicidade e devoção me obrigasse à responsabilidade de efetuar uma simples chamada telefônica. Não consigo me adaptar à complexidade sufocante, pedinte e draconiana da sociedade, por demais rigorosa para alguém como eu, cujo comportamento ainda persiste, após tantos anos, situado abaixo de qualquer parâmetro civilizacional do Ocidente.

Naturalmente, essa minha repulsa aos grilhões da sentimentalidade acabou por se estender, também, aos animais de estimação dos quais homens e mulheres, velhos e crianças, ricos e pobres, extraem seu doce paliativo interacionista. Nada tenho contra os animais, muito pelo contrário. Admiro com paixão, por exemplo, a malandragem das hienas e a elasticidade gastronômica dos ratos. A fauna doméstica convencional, por outro lado, me desperta grande irritação, já que não suporto a subserviência canina e a independência dos felinos fere meu ego. Isto posto, entretanto, tenho o Ernesto por companheiro há bem uns quarenta e dois anos...

Ernesto é um lagarto australiano, discreto e adequado o suficiente para minha filosofia de vida, que levo filosoficamente só. Impressionante como sua serenidade petrificada permanece a mesma desde seus tempos juvenis, como se quatro décadas em nada tivessem pesado naquela arquitetura biológica milenar. Ernesto não me exige nada, e nada exijo dele para além disso. Somos feitos um para o outro e, pela admiração que nutro por ele, fosse o caso de possuir alguma crença na rotatividade da vida após a morte, desejaria reencarnar como lagarto. Australiano, é claro (muito embora tenha algumas discordâncias quanto a necessidade da Oceania no contexto terrestre). Daí é que me pego pensando, vez por outra, se as transformações provocadas pelo futuro cataclisma seriam capazes de contribuir, de alguma forma, para fazer dos lagartos impávidos os próximos seres detentores do poder, na amplitude devastadora desse planeta morno.

Não raro durmo com esses pensamentos, sonho e acordo imaginando como seria interessante saber do homem, nesse futuro insólito, não mais que uma curiosa peça de museu: na qualidade de fóssil, conservado em magma endurecido e resfriado qual fosse pedra morta, por anos a fio antes de se ver descoberto ele veria descansar, sobre a formação rochosa de seu claustro histórico, centenas, milhares de jovens lagartos, deliciosamente ignorantes, estirados sob o signo da vacância, no sol abrasador de sua nova era geológica.

Desta feita, certo do fim que dará um novo início ao planeta, explicado o cataclisma, sobretudo, em seus meandros mais genéricos, creio que, para os objetivos desta primeira carta, as palavras que por hora ordenei em frases e que, quase por mágica, ordenaram minhas idéias e argumentos, cumpriram com louvor sua primeira missão. A estas palavras seguirão outras, que outras seguirão, até que, sem mais poder elucidar e ordenar, encontrar-se-ão extintas tanto quanto aqueles que delas agora fazem uso.

E tenho dito.

Cordialmente,

Nestor Loureiro.
(ser humano desde 1910)

11 comentários:

Anônimo disse...

Sabe uma das razões pra eu detestar astrologia?
Nenhum signo tem o verbo odiar como definidor.
Tá na cara que é treta...

PS: Com todo respeito à digníssima Ligia, você sabe por que cargas d'água teu blog tá dando pau (ui?!)no meu computador?

Cascarravias disse...

'El Viejo' ´w meu ídolo.

Helga, eu acho que sei. é essa rádio que esse maluco inventou de colocar aqui, que trava os PC's dos outros. já vi em outras máquinas

Miosótis disse...

Tantos dias sem te ler lá pelo meu cantinho.....
Saudade!
Falta de inspiração ou preguiça mesmo?!
Gostei do teu conto!
Esse sim....o do fundo da tua quinta!
Fica bem e bom final de semana



(`*•.¸(`*•.¸ ¸.•*´)¸.•*´)
«´`•.**.. ** .•´`»
(¸.•*´(¸.•*´ `*•.¸)`*•.¸)
*

Juju disse...

voltarei como barata...

Anônimo disse...

Nossa, quanto mal-humor...

Samantha Abreu disse...

êba!
um conto em primeira pessoa!
amo! amo!

e essa espírito... nossa! sou fã do Nestor!

gigi disse...

Diogo, nem preciso dizer que quinta é meu dia preferido aqui no FQL, né?

Agora... teu blog também está dando muito pau no meu computador. É só ele. Tenho de tentar umas três vezes pra conseguir. Fode tudo, trava geral.

beijos.

Anônimo disse...

Diogo, gostei muito desse conto. Muitas vezes me sinto assim como o Nestor e acho que você traduziu bem esses sentimentos de frustração em relação ao mundo...
Abração!

4rthur disse...

mancebos, é com satisfação que digo que, terminadas as investigações e apontadas as responsabilidades legais, a real história da prisão de Lyra poderá ser enfim divulgada. E a primeira parte deste relato já encontra-se disponível, na página http://absurdosturos.blogspot.com

É ler para crer.

Juju disse...

cara, esse cara é rabugento, mas tenho q concordar com nestor em vairos aspectos...turo, já vou dá uma passadinha no seu blog...bjs

blah disse...

Aê véi!!! Apesar de eu ainda nutrir uma talvez infantil esperança que o ser humano sobreviva ainda (bem, só se o apocalipse reduzir a absurdamente sua população, senão, não vai dar) por longas eras, e que o "fim" na verdade seja um "novo começo", concordo e endosso o mau humor do velho nestor... Só acho muito egoísmo da parte dele querer morrer em paz primeiro... Se for pra todo mundo dançar, eu vou dançar junto... Se for pra uma parte se safar, quero estar dentro dessa parte que vai construir um "novo começo", porque mudança para o que está aí eu estou convencido que não haverá, não importa o que façamos...