quinta-feira, abril 19, 2007

Contos de Quinta...



Para Diana

Decidido a socorrer a si mesmo, e vendo sucumbirem à melancolia aquele corpo e aquela mente de muito ainda juvenis, o homem enclausurado resolve escrever-se uma carta, e dar-se uma chance de prover, com um acalanto anestesiante, seu eu presente – a saber, o de um jovem mutante a meio passo de uma nova fase em sua vida, sem saber do meio passo já dado. Não era fácil, entretanto, a tarefa de anunciar-se, ou melhor, a imposição de elucidar-se perante o confuso rapaz. Sua própria vitalidade futura estava em jogo, e tudo aquilo que viria a ser dependia, de muitas e complexas formas, daquela passagem determinante para sua libertação.

O homem enclausurado não atribuía à sua condição uma noção de confinamento propriamente dita. Esta sensação era recente, e chegara por substituição ao que outrora poderia caracterizar como um salutar estado de acúmulo, orientado para uma expectativa futura de rompimento. Pelo contrário, quando ainda se encontrava nesse momento de lúdica incipiência, era capaz de experimentar todo o sabor da liberdade e deliciar-se com a impetuosidade daquele que representava, paralelamente, seu presente e passado, bem como a base de seu futuro. Porém, sem saber ao certo como nem quando, o homem enclausurado passou a sentir-se precisamente dessa maneira, preso, asfixiado, impelido ao nascimento que faria renascer, ao meio dia de sua existência, a unidade que buscava junto ao ser com o qual dividia os impulsos de seus atos.

Contudo, esse estado de coisas não era de conhecimento exclusivo do homem enclausurado. Também o jovem havia adquirido consciência daquela inexorável transição, da inquietação do homem que guardava dentro de si e que, um dia, havia desejado com todo ardor da ingenuidade viesse logo à tona. Mas o jovem, constatado o momento, sofria e, com isso, também fazia sofrer o homem enclausurado. Este, no seu íntimo, naquele lócus inconfessável de sentimentos confusos e contraditórios, justamente ali, onde não existia verdade ou mentira, apenas desejo, ele haveria por endossar, para todo o sempre, caso pudesse, o jovem que agora temia por seu desvanecimento.

E foi assim que, na transição da noite para o dia, quando enfim o rapaz descansava o corpo e a mente de mais um dentre tantos outros momentos intensos e excessivos de sua vida, ele decidiu escrever, com muito cuidado e candura a carta que, assim acreditava, faria aplacar suas inseguranças quanto a si mesmo. Após uma curta reflexão, debruçou-se o homem sobre a pequena mesa à sua frente para, logo em seguida, deter-se ao movimento, refletindo um pouco mais, e molhando a pena novamente, retomou a coreografia de seus braços, e como houvesse pensado minuciosamente sobre o conteúdo de sua mensagem, de uma só vez ele escreveu:

"Meu querido rapaz,

Saibas que minha chegada é inevitável, quem sabe mesmo chegada a hora, e que meu direito inalienável, sob esta condição, é de fazer-me pleno e dirigir, com novo fôlego e gosto, os rumos de nossa insondável existência. Entretanto, não te escrevo com o fito de cobrar e exigir, te escrevo como amigo, companheiro, como o único dentre todos nessa vida com quem que tu podes contar até o final, mesmo que ao final estejas sozinho em teu caminho.

Compreendo que, se não é fácil, para mim, assumir, que dirá a ti, deixar-te. De fato, é impossível prometer uma transição absolutamente isenta de sofrimentos e asperezas, pois com a tua partida também partir-se-ão, numa infinidade de cacos multicoloridos, todo um conjunto de frágeis certezas. No entanto, ao longo de minha jornada, prometo que procurarei juntar, da melhor maneira que for capaz, alguns desses fragmentos e, não sendo possível restituí-los em sua originalidade, tentarei ao menos recriá-los, sob a forma de novas ilusões.

Devo advertir somente que não estarás só em tua partida. Contigo também irão boa parte dos teus sonhos, amigos, desejos e dramas; e habitarão todos eles o espaço que hoje ocupo. Então seremos homem, e tu o confinado. Não te entristeças. De certo modo desfrutarás de condições bem melhores do que as que hoje me são impostas, de pura solidão e incerteza. E quando então no comando, reservadas a mim toda a sorte de rudezas, estarás tu romantizado, perseguido pelo arrependimento nostálgico nascido da incapacidade de compreender, ao tempo vivo dos acontecimentos, que aqueles eram os momentos eternos dos quais ficariam a lembrança e saudade de um todo e sempre, do qual nunca farão parte as ninharias à que eu, quando assim o for e comandar, me verei restrito, na realidade do pequeno alcance das minhas mãos. Desfruta do teu tesouro enquanto podes.

Assisto o teu choque com mais dor que impaciência, meu rapaz. Suspiro o suspiro que é só teu, por ser meu o destino e responsabilidade que lhe ensejam. Saibas que é meu cada passo que tens dado, e é minha cada gota de insegurança que te invade, a preencher o vácuo deixado por tuas tolas convicções. Fui eu quem soprou nos teus ouvidos a triste verdade que te assola agora, a de que na vida não há predestinado outro senão o de nascer para morrer; e é minha a revelação de que o dia que tanto esperavas, quando então triunfante cruzarias a linha de chegada imaginária do teu sucesso incondicional, simplesmente, não existe, persistindo em seu lugar apenas uma monótona andança sem fim e sem sentido; fui eu quem te acordou do sonho que sonhavas para ti, e sem pudor demonstrou o quanto havias te idealizado, e o quanto isso haveria de te cobrar no momento de minha chegada. E cada chaga aberta é meu destino e minha aventura, e cada lágrima que derramas é, simultaneamente, uma sentença que devo cumprir e um desafio que me proponho superar.

No entanto, antes que estas palavras venham a contradizer a essência de minhas intenções, dobrando assim um espírito para o qual se faz o império momentâneo da plena força, trago-te o consolo de minha temporada, quando hás de colher novos frutos, de sabor e consistência ainda inéditos para o modesto paladar de tua inexperiência. Guarda apenas que os aproveitará colhidos sejam à época correta.

Meu jovem rapaz é chegada a hora, e quando receberes esta carta terás contigo o aval que subscreve tua partida. Deixa o mundo que pavimentaste com teus sonhos, deixa o mundo que sonhaste pavimentar. Esse caminho, sigo eu agora, com a simples herança do teu vigor.

Dorme em paz".

* * *

Com o ponto final da carta extraiu o homem enclausurado certa paz para si mesmo. E descansou, e dormiu, e sonhou. E em seu sonho o homem enclausurado encontrava-se finalmente livre, a empreender um vôo sobre um conhecido território que lhe descrevia, com suas linhas e curvas sinuosas, a trajetória de sua própria vida. Do alto, a planar num movimento horizontal, pôde vislumbrar as paisagens de sua existência e os cenários nos quais atuou com sucesso e com fracasso, ao som das vaias e dos aplausos, por vezes, sob o silêncio da indiferença. E assim, quando findo seu insólito percurso, encontrou o dito homem aquele jovem rapaz que lhe precedera, na clareira onde escolhera pousar, a repousar com toda sua graça juvenil. Este, tomando-lhe as mãos com um sorriso, arrematou-o para um novo vôo, onde juntos, tanto o jovem quanto o maduro, alcançaram sua tão desejada plenitude, no paradoxo daquilo que se entendia por velhice.

Em seu passeio derradeiro, seguros o jovem e o maduro pelas enrugadas mãos do velho, seguiram, qual fossem uma tríade sagrada, ao clímax de sua autocompreensão. Nesse momento triunfal, quando então se faziam sonoras as últimas badaladas de uma existência repleta de gratas surpresas, aquele ser incompleto, a sentir-se uno, único e pleno pela primeira vez em sua vida, compreenderia que todo seu incansável vôo, todo seu desgastante percurso, estava voltado para uma única missão, a cumprir-se com simplicidade no irrefutável toque da finitude.

15 comentários:

Diogo Lyra disse...

O homem é sempre conflito.
A juventude, bela e efervescente, promete com seus sonhos um mundo sempre melhor.
O avançar da idade, belo é, também. Mas traz consigo algo de inquietante, de dolorido, de saudoso.
O homem é sempre conflito.
A transição do jovem para o maduro talvez seja, nesse sentido, o que há de mais inquietante e confuso para qualquer um.
E este conto é sobre isso.
Obrigado.

Anônimo disse...

MARAVILHOSO, SUBLIME, FENOMENAL!!!

Diogo, fiquei muito emocionado com esse seu conto. Cara, passei e ainda passo exatamente por isto, sei lá, essa ansiedade, desilusão, medo...

Mas concordo com você. A maturidade também é uma benção.

MEUS PARABÉSN, nota 1000.

4rthur disse...

Esse é top 5 com certeza. O tema é ótimo, o olhar é original e a escrita, bem, é a tua escrita. E nisso vai mais um elogio, este indizível, inexplicável.

Fico imaginando que um dia você vai se esquecer desse texto, e vai viver e envelhecer de verdade, até que, em dado momento avançado nessa nossa carreira mundana, vai lembrar-se do que escrevera e, após alguns minutos vasculhando os arquivos hibernados da antiga produção literária, deparar-se-á com este texto. E provará nele um outro sabor, pois que já será outro homem, e quase poderá sentir o choque entre o velho e o moço quando novamente deitar os olhos sobre o texto.

É claro que estarei lá pra ver, e aí você me conta.



E tu não poderia ter escolhido melhor pessoa pra dedicar o texto.

Anônimo disse...

Lindo, lindo, lindo!!!!!
Diogo, ou Sr. Lyra, você tem o dom de emocionar as pessoas, é arrepiante!
Muito muito muito bom, noooosa...
Beijinhos.

Bina Goldrajch disse...

Bravíssimo, Sr. Lyra! Bravíssimo!
Desceu mais redondo que uma Skol. =)

Anônimo disse...

Simplesmente D.E.S.L.U.M.B.R.A.N.T.E!!!!!!!
;D

Anônimo disse...

Esse texto é mesmo universal, e não me espanta que tantos se identifiquem com ele... Eu mesma, relendo-o agora pela milionésima vez, ainda me pego com lágrimas nos olhos.
Um grande beijo, meu amigo!

Diogo Lyra disse...

Gente, só para esclarecer que a Dida é a Diana - para quem este conto é dedicado -, amiga, musa inspiradora e, sobretudo, o gatilho deste que foi o meu primeiro conto.
E é interessante perceber como, no meu processo alucinado de tentar ser gente, quando ainda me encontrava atolado até o pescoço de ilusões e demais infantilidades, foi ela, Dida, Diana (é olímpica, então, que seja) quem, com uma única frase, uma única questão, colocou a pulga atrás da minha orelha e resultou nisso aí...
Hoje sou eu quem diz obrigado Diana. Por tudo e mais um pouco.

Fabrício Fortes disse...

uau!
mas como disse Nelson Rodrigues: "jovens, envelheçam! Envelheçam, pois só assim serão levados a sério".

Tamires disse...

Nossa Diogo,estou no trabalho nesse momento e acabei de ler essa sua obra. Que maravilha! É de uma sensibilidade e amor próprio contagiante,e esse não é o local ideal pra se ficar tão emocionada como me encontro agora.
Meus parabéns.
Seu texto é encantador.

Samantha Abreu disse...

Êba!
êxtase total!

que coisa mais... mais... extasiante! gente!
está nos meus preferidos!
sensibilidade tocante, lá no fundo.

Parabéns, brother!

Mi disse...

Impossivel não se emocionar ...

Parabéns pelo texto!

Anônimo disse...

Concordo com sua amiga: este conto tem substância universal. E é primoroso.
Forte abraço,
Rodrigo Cruz.

Miosótis disse...

Ui.....excelente comentário que vc me deixou!
Adorei!!!
Com poucas palavras vc disse tudo....
E no seguinte vem o teu texto postado aqui....maravilhoso!
Beijo e bom fim de semana

blah disse...

Acho que meu comentário é só mais um pra aumentar o coro dos que se emocionaram com o texto.

Lyra, mais uma vez trouxeste lágrimas aos meus olhos.

Continue usando maravilhosamente este belo dom que Deus lhe deu.

Abraço