quinta-feira, maio 10, 2007

(extraído do diário secreto de T. Botelho Pinto)
Tenho poucos motivos para me achar um ser humano exemplar. Naquele momento mesmo, diga-se de passagem, acabara de completar com sucesso uma de minhas artimanhas mais odiosas e, ciente de tudo o que havia se passado, caminhava serenamente o restante do quarteirão ainda com meio cigarro entre os dedos. Como sempre estava muito chapado e sorri ao lembrar do Carroba indo embora junto comigo pouco antes, lamentando a súbita interrupção do nosso encontro. Sem sombra de dúvidas ele era um cara legal mas, naquelas circunstâncias, não hesitei em fazer uso da famosa “manobra de fuga nº 04”. Joguei a guimba (aproximadamente um terço dela) fora, dei um alô pro porteiro e, menos de cinco minutos depois de ter saído com o dito cujo, já estava eu de volta ao lar, merecedoramente só.

Imediatamente sentei no sofá, peguei os livros de volta e decidi apertar um beck – “o beck da vitória”, como disse pra mim mesmo em voz alta. Quando finalmente achei o isqueiro e acendi o baseado, senti o tipo de regozijo que apenas os canalhas são capazes de experimentar e novamente soltei uma comedida risada. Na verdade, a consciência de minha vilania bem sucedida não impedia que eu mantivesse, paralelamente, uma visão mais lúdica sobre o que se passara. De fato, findo o beck, já naquele momento posterior em que o tabaco é a estrela, modificara radicalmente minha concepção sobre o ocorrido, passando a acreditar piamente que fora eu o vitimado no episódio carrobaniano – quando então, para protegê-lo de seu pecado, ofereci a outra face em sincero sacrifício. No meio do cigarro fui buscar um café, já absolutamente convicto de minha inocência e, por que não dizer, maravilhado com a admirável pureza dos meus sentimentos.

O caso é que o Carroba apareceu do nada. Porra, imagine só, você, na sua casa, largadão, de cueca no sofá assistindo TV, tudo uma grande zona e, como num passe de mágica, aparece o Carroba. “Puta-que-pariu” – foi o que pensei. “Sobe aí, cara” – externalizei pelo interfone. Tinha que ser rápido, já que contava com apenas 44 segundos, que era o tempo de subida do elevador, para dar uma geral no aspecto de holocausto nuclear da casa. “Filho-da-puta” – soltei faltando apenas 8 segundos para a chegada deste velho amigo de infância.Na verdade, na verdade mesmo, o Carroba nem estava tão errado assim.

Fiquei de devolver uns livros que ele havia me emprestado, mas acabei me afeiçoando tanto por eles que jurei, com lágrimas nos olhos, mantê-los sob meus cuidados e tratá-los como os filhos biológicos que eu jamais desejei algum dia ter. De fato, por sua insistência em reavê-los, cheguei a pensar que também ele, o bom e velho Carroba, nutria algo de especial pelos tais livros. Por via das dúvidas, cedendo às sentimentalidades do momento, optei por não atender mais o telefone. Assim flutuavam meus pensamentos até que ouvi o elevador estancando no meu andar e, de pronto, o soar de duas inconvenientes batidinhas na porta. “Filho-de-uma-puta”, foi a sentença final prolatada enquanto girava a chave e escondia os livros debaixo do sofá. Com um abraço efusivo e um sorriso quase contagiante, o Carroba adentrou minha humilde propriedade como um vampiro que acaba de ser convidado para uma taça de vinho.

Como de costume, apertamos unzinho e mandamos brasa. Tudo ia bem enquanto fumávamos até que, num dado momento, nitidamente sob o efeito relaxante do baseado, o Carroba entra naquela espécie de transe vegetativo, de um automatismo típico daqueles que já embarcaram, há muito, na complexidade solitária de sua própria viagem. Era sempre assim: o Carroba ficava absolutamente mudo, sentado no sofá, com o olhar fixo em alguma coisa além do horizonte, e eu lá, na merda, tentando desesperadamente articular assuntos e mais assuntos para evitar o constrangimento do silêncio. Apertei outro, como geralmente faço nessas situações, e ainda consegui sacar mais uns três ou quatro temas inéditos.

Quando já estava muito puto com tudo aquilo o telefone tocou. O aparelho não tinha fio e estava do meu lado, mas, como antevisse a luz no fim do túnel, levantei e fui atender a ligação no quarto antes mesmo de saber quem era. E não era ninguém – a ligação caiu. Contudo, senti que aquela talvez fosse minha única chance de escapar e imediatamente me lembrei da “manobra de fuga nº 04”. O risco era imenso, mas contraí os lábios num sorriso discreto e, de pronto, simulei uma conversa com meu interlocutor fictício.“Puta merda, não acredito nisso”, lembro de ter falado em tom mais alto e grave. Balbuciei ainda um ou dois palavrões e, desligando o telefone, fui até a sala comunicar ao Carroba meu súbito infortúnio – diga-se de passagem, ainda em fase de construção mental. Com a cara mais lavada do mundo falei que precisava ir com urgência ao banco “resolver uma merda que eles tinham feito”.

Me mostrando altamente consternado, conduzi aquela perfídia teatral com uma atuação impecável. Então, como estivesse sem graça, pedi licença para tomar um rápido banho e trocar de roupa, para, em seguida, assumir contrariado o ônus de minhas responsabilidades. Nitidamente desapontado, o Carroba apenas anuiu com a cabeça e desceu junto comigo ao som dos impropérios que emitia, naturalmente, em face daquela odiosa situação. “Malditos bancos”, foi a frase que repeti três vezes no elevador, perdendo apenas para “filhos-da-puta”, com quatro citações e, naturalmente “beleza, ele esqueceu os livros”, com aproximadamente 9 aparições mentais.

Já na porta do meu prédio, me despedi do cara, andei na direção oposta a dele, acendi um cigarro e, feliz com o sucesso da “manobra de fuga nº 04”, dei uma rápida volta no quarteirão, retornando pra casa antes mesmo que o último trago tivesse sua hora. Felizmente ninguém saíra ferido ou magoado com o lamentável episódio, cujo desfecho se deu de maneira quase tão perfeita quanto daquela outra vez em que tive de alugar um smoking para simular um... ah, foda-se. Isso é tudo besteira. Pra mim o que importa mesmo é a felicidade dos meus amigos.


* Interessado em saber como o diário secreto de T. Botelho Pinto foi encontrado?
Aperte aqui!

14 comentários:

Miosótis disse...

NEM COMENTO.......

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   COMO É BOM FAZER AMIGOS,

   A VIDA TEM NOS BRINDADO COM

   BELAS SURPRESAS

   E UMA DELAS É VC!
BOM FIM DE SEMANA QUE SE APROXIMA
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blah disse...

Putz, T. Botelho Pinto é FDP mesmo, quem tem um cara desse como amigo não precisa de inimigos...

Tamires disse...

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
CARA,POR UM LIVRO QUE EU GOSTE EU FAÇO PIOR,JA DISSE QUE NÃO IA DEVOLVER NA CARA DURA MESMO,RSRSRS,MAS O BOTELHO É MALANDRO, TEM QUE HAVER UMA SACANAGEM PRA SE AUTO VANGLORIAR.
RSRSRSRSRSRRSRS...

Kiti disse...

Diogo, fiquei realmente lisonjeada com seu comentário... Que aliás, salvou meu dia, que tinha começado bem ruinzinho! Ou seja, sinta-se responsável por me poupar de um dia inteiro de mau-humor!

Adorei esse conto. Hilário... rsrs... Também me afeiçôo às vezes por pertences alheios (em geral DVDs), mas nunca tinha pensado que uma veia teatral pudesse salvar alguém dessa "dores devolutivas"...

Gosto muito do seu blog, admiro e invejo as pessoas que sabem escrever textos com humor. Eu sou meio mórbida, mas gosto de rir. Adoraria poder também fazer os outros rirem com o que escrevo. Como não tenho esse talento, gostaria de botar seu link no meu blog, tudo bem?

Até... E obrigada por salvar meu dia. Com o comentário e com o seu conto.

4rthur disse...

Tive a grande oportunidade de ler este diário secreto na companhia do faxineiro deste espaço que, entre um trago e outro, me confidenciou as memórias desse grandissíssimo filho da puta que atende pelo nome de T. Botelho Pinto (com prazer).

Garanto aos leitores que as muitas canalhices e cafajestagens lá presentes irão dar um colorido especial a este espaço literário, todas as quintas. não percam.

Anônimo disse...

Prezado Diogo Lyra, o Sr. foi avisado de que a publicação do conteúdo de meu diário secreto implicaria as medidas judicias cabíveis. O Sr. me acusa de sordidez, mas é a sua falta de excrúpulos que me assusta. Fiquei chocado ao ver que nem ao menos teve o cuidado de modificar os nomes, ferindo não só a minha honra, como, sobretudo, a de terceiros.
Já contactei meu advogado.
Passar bem.

Theodoro Botelho Pinto

MM disse...

Que ótimo! minhas visitas são lonngas aqui! abração!

Rainha dos Raios de Sol disse...

Brilhante, nunca me imaginei lendo um texto tão grande em tão pouco tempo... isto é... não depois do divórcio... rsrsrsrs

Tive apenas uma certeza, de que o senhor Theodoro é um usuário tão assíduo da cannabis, que sequer deve lembrar o telefone de seu advogado.

Tem meu apoio, caro Diogo Lyra, homem com propósitos semelhantes aos meus, pretendo sempre que puder visitar este espaço às quintas, e me deliciar com a audácia e malandragem de alguém que no fundo gostaria de imitar.

Anônimo disse...

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Caro senhor Diogo Lyra

Venho, através deste contato, informá-lo que estão sendo tomadas as medidas legais cabíveis contra o indevido uso do diário secreto de meu cliente, Theodoro Botelho Pinto, pelo senhor.

Aproveito para oferecê-lo uma última oportunidade de, por livre e espontânea vontade, respeitar a privacidade de meu cliente e, desta feita, suspender futuras publicações indevidas deste material particular.

Caso o senhor ignore tal pedido, serei obrigado a dar continuidade no processo judicial e intimá-lo a prestar futuros esclarecimentos dentro das normas da lei.

Atenciosamente

Olavo Lebre Cabrito
(advogado)

Anônimo disse...

Eu não disse que vinha merda da braba?! Olha rapaz, essa de "T. Botelho Pinto" foi muito engraçada mesmo e parece que "ele" não gostou muito, né?
Abração!

Miosótis disse...

♥ Passei rapidinho só pra deixar...um camião de... ♥

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   ♥ ENTREGA EFECTUADA COM SUCESSO....... ♥
BOM FIM DE SEMANA

Anônimo disse...

diogo
voce deixou um comentario simpatico no meu blogue e concluo agora que um elogio ao meu texto vindo de voce é uma honra visto que o seu texto é
s-e-n-s-a-c-i-o-n-a-l.
Este conto é muito bom, gostoso de ler , engraçado...
e que blogue hi-tech, eu mal sei postar fotos e to ouvindo Lyza Minelli no seu...milagres da ciencia!!!
3 vivas para a paciencia e curiosidade técnicas, que no meu caso não acompanharam o manual de instrução(se o tivessem eu tampouco teria lido)
ah é Claudia e não carla
valeu!Parabéns.
claudia kras

Vivi disse...

Não, rs, eu não sei o que é mais divertido: ler o conto ou os diálogos entre T. Botellho Pinto, Olavo Lebre Cabrito e o digníssimo Sr. Lyra!! Bom, de qualquer forma, quem não deve ter tido o seu dia de Carroba, né? Eu já não empresto mais livros!