quinta-feira, maio 31, 2007

Contos de Quinta...

Para Rapazes
e
Moças

Era o oposto do que era sempre, mas como sempre fizera, refugiou-se em si mesmo. Dessa vez, porém, voltou-se ao interior sem idolatria, piedade ou dureza, pois procurava apenas a razão. E dos esvoaçantes grãos de areia ao seu redor, lépidos eólicos flutuantes, sentado na beira da pedra ele extraiu, sem ao menos se dar conta, a única verdade que pôde: o trânsito era intenso.

Diante dos seus olhos, como miragens da vida real, transitava a própria vida a completar, com o peso caótico de seu balé, não mais o rotineiro movimento de rotação com o qual já se acostumara, mas uma translação completa, repleta de novas outras rotações. E como o vento explicasse a vida tanto quanto os ínfimos grãos de areia expressassem o homem, ele percebeu a magnitude do detalhe tanto quanto a vulgaridade da pintura – e derramou uma lágrima de paixão.

A pedra enegrecida pela gota transparente, que dos seus olhos acabara de cair, fez do ambiente um palco sensitivo no qual destacava-se, como atração meio-mórbida meio-lúdica, um inquieto rabo de lagartixa a pular desgovernado. Desacompanhado do corpo que, um dia, fora sua extensão natural e inconteste, o rabo debatia-se sobre a pedra e nada despertava naquele garoto para além de um certo desconforto com tal luta espasmódica.

Ao seu redor transitavam as nuances do novo tempo, e sufocavam-no as exigências de um novo homem: ele, o que era, já não era o esperado, e o que viria a tornar-se, esse, ainda era inesperado para ele. De qualquer maneira já eram dois naquele um melancólico, vivendo em contradição, sentados sobre a pedra, aos estilhaços de areia, sob os auspícios do vento, reificando com suas ambigüidades o próprio ciclo da vida.

De certa forma, ele acreditava, sofria e vivia naquele momento um drama semelhante ao da lagartixa. Decepado contra a vontade, assistia impotente parte de si debatendo-se, desgovernada, desesperada, descrente. Por certo a lagartixa sofria com a perda do rabo – pensou – sobretudo porque dela era parte concreta e, sendo assim, este abandono só poderia lhe trazer sofrimento. Concluiu que era como a pobre lagartixa, mas faria de tudo para conservar-se por inteiro, como sempre fora. E sorriu satisfeito.

Do colorido cego que transbordou de seus lábios, contudo, fez-se o cinza na pedra escura e, a brilhar cintilante e solitária, aleijada, estava ela, a lagartixa. Olhando para o homem a sua frente, gélida e impávida, perguntou porque ele insistia tanto no que já ficara para trás, se contorcendo pelo que já passara e não havia mais de retornar. E subitamente foi embora.

Quando se levantou da pedra vislumbrou no horizonte toda a dor e satisfação que lhe aguardavam. Ao retesar os músculos, e finalmente movimentar o corpo, pela primeira vez sentiu-se consciente de sua jornada e, sobretudo, dos sacrifícios que impunham percorrê-la. Deu o primeiro passo e, ao seguir adiante pelos caminhos da vida, tão logo entendeu que, diferente do que pensava, no lugar da própria, ele era mesmo o rabo da lagartixa.

17 comentários:

Anônimo disse...

É Diogo, tem certas coisas na vida que a gente tem que superar e abandonar de vez para ser a verdadeira lagartixa e não o rabo...

Acho que esse conto foi o que eu mais me identifiquei até hoje, pro bem ou pro mal.

Parabéns!

Vivi disse...

Nossa isso é a cara da Clarice Lispector... (não sei se desagrada esse tipo de comparação, mas todos têm suas influências, que se revelam mais ou menos no que escrevem, né) Essas coisas esfregam na nossa cara a nossa imperfeição e suposta superioridade sobre a natureza. E é difícil aprender a lição da lagartixa. Basta ver quantas vezes nos comportamos feito o rabo decepado.

Roberta disse...

Nossa Diogo, tenho que concordar com a Vivi sobre a semelhança com a Clarice - e isso é um enorme elogio!
A-d-o-r-e-i seu conto!!!

gigi disse...

você mentiu pra mim.

Diogo Lyra disse...

Meninas, agradeço a referência à Clarice Lispector que, para mim, é um imenso elogio. Contudo, o que para mim é uma vergonha - acreditem se quiserem - é o fato de que nunca li uma só página desta mais que absoluta escritora brasileira. Sou grato e prometo começar a leitura de "A Paixão Segundo G. H.", que comprei recentemente...

Gigi, perdão pela falsa propaganda sobre a coluna do "Bom e Velho Heterossexual Masculino". Resolvi fazer algumas alterações e não terminei em tempo. Durante a semana ou na próxima quinta sai.

Anônimo disse...

Uau, que poético Sr. Lyra...

Cascarravias disse...

pra saber do que se trata a verdadeira lagartixa, só correndo efetivamente atras dela. no caminho se apreeeeende o que é lagartixa, e o papel do rabo. mas até correr de fato atras da lagartixa, o rabo é lagartixa, não há mesmo possibilidadde de prova contrária.

é custoso aprender como se adequa o comportameto prático a essa descoberta

Cascarravias disse...

aliás, acabei de me dar conta de como ese teu escrito tem conexão com tua proposta de escrito futuro...

Notícias Mundo Afora disse...

Adorei seu blog!! Abraços

Anônimo disse...

Bonito seu conto Diogo!
Bjs!
;*

Anônimo disse...

Gostei daqui. gostei da rádio que toca ao fundo tbm. é isso. eu volto.

gigi disse...

fiquei puta pra caralho.

Tamires disse...

O sensação que eu tive ao ler o conto dessa semana foi o de ter entendido a continuidade do sentimento do homem que a pouco escrevera a "Carta de um homem confinado
no interior de um outro homem
em sua primavera madura".
Muito bom Diogo,meus parabéns!

Samantha Abreu disse...

putz,
Clarice é minha musa, eternamente.

e isso tá bem a cara de uma coisa que ela iria ler, acomodada em uma poltrona velha, e diria: "que texto fantástico".

Beijossssssssssssssss

em breve disse...

Bom de ler...

MM disse...

Que delícia!!!!

blah disse...

Gostei, mas discordo da Tamires...

Não sei se são meus nervos que não andam mais tão a flor da pele, meu estado de espírito e tal, mas esse texto não me emocionou tanto quanto "Carta de um homem confinado no interior de um outro homem
em sua primavera madura", nem quanto ida e Ócio"...

Mas, não é por isso que deixe de ser bom...

abração