quinta-feira, setembro 20, 2007

Contos de Quinta...


para Samantha Abreu


Se pudesse contradizer a ordem natural das coisas e, assim, tornar-se a última testemunha do seu ato final de existência, veria em posição privilegiada o balé descendente da rosa, confundindo em espirais de vermelho-sangue a placidez do azul celeste e a palidez de sua carne tesa rente à madeira. Ali, deitada, como se nunca tivesse levantado para a vida, foi agraciada também por amarelos, brancos e roxos – um mar de cores insensatas que se misturavam, entre pétalas impotentes, diante da força e da presença do vermelho fúnebre.

Sentia o desconforto escorrer-lhe pelo corpo insinuante, massacrando com seu odor ocre e viscosidade magmática a mocidade límpida de seus treze anos de idade. Jamais esqueceria aquele momento de apoteose caótica, quando então o sangue desceu por entre suas pernas trêmulas de medo e anunciou, como quem canta, o fim do primeiro ciclo de sua inocência: “Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós”.

Contudo, apesar da eloqüência do sangue, não era dele que emanava o mantra cristão que ressoaria em seus ouvidos ainda por muito tempo. O sangue, o som, a sanha daquele momento, tudo, enfim, provinha dela, a Mãe. E pensava nela, a Senhora Perfeita, que com toda sua educação privilegiada, sua mania de limpeza, sua beleza pasteurizada por plásticas e perfumes importados, também não conseguiu evitar, nos seus jovens tempos, esse mesmo constrangimento. De certa forma, era essa íntima ligação entre ela e a Mãe a razão de seu desespero, como se a descamação do endométrio a tornasse uma versão mais jovem daquela Mulher que beijava carinho e soprava álcool de lábios tingidos de batom vermelho. Vermelho, vermelho, vermelho-sangue...

Não soltou um único gemido de prazer e tudo o que dela saiu foram gritos de dor. Uma dor lacerante que lhe varria o corpo como impingisse, de dentro para fora, um renascimento completo, deflorando por inteiro a menina que se tornava, de uma vez por todas, a mulher que ainda não se preparara para ser. No lençol, atestando a ardência íntima de suas partes menos conhecidas, uma mancha vermelha de proporções médias, colorido único de um cenário negro por excelência: “Puta, puta, puta – igualzinho sua Mãe. Puta, puta, puta – igualzinho sua Mãe. Puta, puta, puta – igualzinho sua Mãe”.

Os gritos pareciam ser todos dela, mas o sangue, o silvo, o sexo daquela encenação eram protagonizados por ele, o Pai. O Homem, que chegava em casa tarde da noite com os cabelos tão molhados que ensopava de lágrimas o rosto da Mãe, acenava seu contracheque parrudo com a mão esquerda, enquanto traçava no ar, com toda sua potência destra, o arco que estalaria em cinco dedos no rosto da esposa ébria e descontente. Era nesses momentos que explodia toda a ambigüidade da menina, quando, apavorada, sentia-se também tomada por ondas de uma jubilante admiração. Entretanto, ainda que devota daquele homem oprimido pelo nó da gravata, quando tentava se lembrar, tudo o que podia ver eram seus olhos repletos de ira, desenhada em gráficos de traço vermelho. Vermelho, vermelho, vermelho-sangue...

Havia por fim encontrado a paz. Pode-se dizer que mergulhara em um mar de segundos infinitos, onde nadou em ondas silenciosas logo que seus tímpanos explodiram com o estampido seco e libertador do disparo. Quente e viscoso como nunca antes, o arauto rubro inundou seu corpo de redenção e, como fosse prova cabal de sua expiação e sacrifício, parecia render louros ao destino salvador: “Vai morrer pra aprender que mulher de malandro nasceu pra levar pau. Vai morrer pra aprender que mulher de malandro nasceu pra levar pau. Vai morrer pra aprender que mulher de malandro nasceu pra levar pau”.

Pareciam ser do rapaz com o qual se juntara – para a valsa de uma paixão violenta – os urros de ódio e ressentimento a encerrar o romance proibido que lhe custara o desgosto da família e sua saída de casa. Mas, pela primeira vez na vida, o sangue, o sonho, a soma de todo um momento eram inteiramente seus e de mais ninguém. Fechou os olhos e sentiu a escuridão avançar, ainda que o sol preenchesse de luz suas pálpebras banhadas de um sossego vermelho. Vermelho, vermelho, vermelho-sangue.

14 comentários:

gigi disse...

liiiiindo.

Clara Mazini disse...

Esse vermelho é pouco sossegado. Uma explosão.

Vivi disse...

Nossa, que forte! Muitas, muitas imagens fortes e palavras dilacerantes. Os Contos de quinta voltaram com tudo!

Fabrício Fortes disse...

uau! esse foi visceral, como diria uma amiga minha.. finalmente, temos de volta os contos de quinta, que na verdade são de primeira!

4rthur disse...

caralho, Fabrício, só com esse teu comentário eu me liguei no trocadilho implícito dessa coluna, acredita?

Esse conto foi rasgante. Fico admirado com essa capacidade de falar de um ponto de vista totalmente diferente do próprio.

Só uma objeção: hoje em dia, nenhuma menina demora 13 anos pra menstruar. Será que isso faz parte da seleção natural?

Anônimo disse...

Devia ser menina do interior...

Vivi disse...

Devia ser de Minas...rs

Unknown disse...

PQP! Caralho, Diogo, caralho mesmo! Muito bom. Rasgante, levou um pedaço da minha alma. "Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz". Voltou arrepiando truta!

Abraço!

Unknown disse...

Porra, também precisei do comentário pra perceber o trocadilho infame... ê leseira da porra!

Tchello Melo disse...

O que resta é deixar fluir
como o sangue.

Anônimo disse...

Bonito.

Ah, 4rthur, meninas ainda menstruam aos 13, sim. Pra azar delas, claro.

Samantha Abreu disse...

putaqueopariu.
pela primeira vez, não sei o que dizer.
.
.
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não sei o que dizer.

enquanto lia, senti um ardor enorme no estômago. e senti calafrios.
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senti tudo isso, mas, ainda assim, não sei o que dizer.

Muito obrigada.
um beijo!

Anônimo disse...

uma semana inteira e nada. Sem nota filosófica, sem uma coisa que eu gosto, sem conto de quinta. nada. tu tá um cara relapso.

Renato Alt disse...

Excelente, meu amigo. Meus parabéns. É sempre reconfortante encontrar na internet um espaço que, mais do que nos permitir pensar, estimule a fazê-lo.
Grande abraço.