quarta-feira, novembro 08, 2006

O intenso levitar da flor

Para Ligia.


As marcas deixadas na terra fofa, quando de seu caminhar, eram a prova inequívoca dos pés que tinha fincados ao chão. Porém, como levitasse meio centímetro acima dos sulcos abertos por suas pegadas, deslizava pela vida com graça e sutileza, pé ante pé, sem tocar o solo e ver-se presa, como naturalmente ocorre, à concretude gravitacional que lhe permitia os passos. O chão onde pisava, isto posto, não representava mais que uma poesia inacabada na qual transcrevia seu rastro, sem que, no entanto, fizesse pesar sobre ele o peso de sua própria existência.

Contudo, a despeito da leveza com que evoluía em sua trajetória, eram poucos os que ignoravam a vitalidade e força dos seus passos de menina, que passeava pela vida não porque dela fez sua ilusão, mas porque era a própria vida, com seu volume e intensidade desmedidos, quem se obrigava, resignada, a passear no infinito de seu universo particular. De fato, ao observador externo, era nítida a potência de seu espírito, tão inquebrantável que, perseguida uma meta, fosse qual fosse, mesmo entre montanhas e arranha-céus, nenhum cenário era capaz de lhe subtrair o horizonte. Como irradiasse luz própria, penetrava por entre brechas e tomava todos os espaços no ambiente à sua volta.

Entre a aridez dissimulada do devaneio e a torrente caótica da realidade, mediava o mundo como fosse dele a única guardiã. Trazia consigo, em virtude disso, o diapasão de sua alma às mãos, exposto para quem e o que quer que fosse, fosse o caso, muito comum, de encontrar na vida nota desafinada, a ecoar e ecoar, insuportavelmente, na singular acústica de seu mundo sensível. Quando isso acontecia, deitava o mundo em seu colo e cantava para si um canção de ninar, e assim permanecia, com seu doce canto, até se fingir tomada pelo sono. Então o mundo dormia.

Insone, do coração irrequieto que abrigava ao peito, pulsante de emoções incontroláveis, fez-se escrava e, sem saber, entregue aos súbitos proclames de seu sentimentalismo autoritário, dançava a valsa da vida sob o ritimo cardíaco de suas batidas, executando com perfeição a coreografia da espontaneidade e do amor. Era plena, infinita, expansiva: ela viva, ela vida.

De pétala e espinho era ela, a menina. De folha e caule era ela, a mulher. Mas como flor, então, vivia o dilema de ver-se enraizada ao chão enquanto mirava, perpetuamente, o firmamento que lhe permitia o sol de seu vigor.

Os frutos que aguardava com ansiedade, por sua vez, dependiam mais que do brilho e calor de uma existência ensolarada. E ainda que não soubesse de início, como normalmente acontece, aprendeu por si mesma que o florescimento reiterado da vida implica também nos cansativos dias de chuva e todo o cinza de sua explosão. Cada gota uma lágrima e cada lágrima a esperança de uma nova fertilização.

Como se dos olhos só se soubesse o close, e para além de ocular fosse ele mesmo todo o globo terrestre, viu-se, naquela íris de sol, o nublar do tempo e o correr das lágrimas, derramadas sobre o colo da mulher que tanto se acostumara às tempestades de sua nova fase. Viu-se, nos olhos da menina que chorava o mundo, um mundo choroso e repleto de nuvens, pouco convidativo, ansioso por calor. Cansada pelo pranto que emitia, e que representava, para ela, mais um desafio a si mesma e menos uma lamentação, finalmente cedeu ao merecido sono.

Na noite de suas pálpebras cerradas, contudo, desligou-se da paisagem que se transformava ao redor do pequeno corpo adormecido. Porém, quando acordasse novamente, a menina saberia ao certo as razões do arco-íris que pairava sobre ela. Só então, ao colher dos frutos no seu recente pomar, a mulher viria a compreender e agradecer pelo sol e a chuva, que fazem da vida, em concomitância, uma experiência tão intempestiva quanto fértil, a brindar festiva seu novo desabrochar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa!!! Estou sem ar!!!
Amei!! De todos os escritos, concordo plenamente com a Diana, é o mais lindo!! Deixou o meu dia mais colorido e feliz!!!
Bjs