quinta-feira, março 15, 2007

Contos de Quinta...


Vida
e
Ócio

(de como é proveitoso para a vida possuir tempo de vivê-la)


O presente tópico é um clássico e, confesso, um de meus temas prediletos. Foi ele, inclusive, braço direito e mecenas desses escritos, merecendo, portanto, a devida atenção e o louvor pomposo de todas as suas possibilidades. Porém, antes de desnudar a importância que atribuo ao ócio – que recomendo não só para mim, mas para todos os homens e mulheres desse planeta – devo conter meus ânimos e dar vazão ao debate sobre tudo aquilo que se considera o honrado não-ócio.

Em que consiste o contrário do ócio? Servir o Estado, a Deus, ou ao Mercado? Servir, servir e servir? Em todo lugar que procuro, por mais que me esforce, não consigo encontrar outra concepção de não-ócio que escape ao conceito de servidão.

Um dos grandes pilares do não-ócio é o trabalho, atividade que, segundo alguns, dignifica o homem. O trabalho, segundo eles, é sua atividade mais importante, pois faz crescer as virtudes materiais e espirituais da raça humana, além de produzir a riqueza e prosperidade merecida por cada nação. E tudo se passa sob o confortável ninar de uma mão invisível. Foi o trabalho que ergueu pontes, desbravou o céu, furou o espaço, aprofundou o mar, visitou a mente. Foi o trabalho que encurtou distâncias, materializou a memória, tornou mais jovem a idade e mais saborosa a carne. Foi o trabalho, e só pelo trabalho, que a vida adquiriu contornos mais fáceis, seguros e duradouros. Graças ao trabalho a raça humana foi devidamente dignificada.
Mas do que estamos falando?

Certamente não é do mesmo que um trabalhador boliviano, por exemplo. Seus ancestrais viram, à época da colonização, a folha de coca e seus atributos sagrados serem taxados de demoníacos, foram acusados de tributarem ao ócio suas vidas, incapazes do esforço digno e necessário do trabalho. Mas a Igreja e a empresa colonial deram um jeito nisso. Para combater o ócio do demônio, trabalho! Para combater o ócio do demônio, religião! Para combater o ócio do demônio, servidão! No entanto, logo perceberam os Certos que a disposição demoníaca da folha de coca, mais que um instrumento do ócio, poderia se tornar um instrumento do não-ócio, do trabalho, da religião, da servidão. A falta de fome e o maior vigor proporcionado pela mastigação da folha ajudavam aqueles debilitados homens, indolentes índios, a produzirem ainda mais, e era, inclusive, necessária para combater o ócio. E assim, em nome de Deus e do Mercado, dignificá-los e estimular a produção. Em nome do Mercado e de Deus, estimular a produção e dignificá-los.

Atualmente, a dignidade do trabalhador boliviano vale menos de um dólar por dia. A estatura média de um boliviano, devidamente dignificado pelo trabalho, não passa de 1,60 m. A expectativa de vida de um trabalhador boliviano, necessariamente dignificado pelo trabalho, não ultrapassa os 45 anos de idade. E é por aqui que começa o contrário do meu ócio.

Alguns poderiam argumentar que fora à custa do trabalho e da produção que veio o homem a edificar todo o mundo que concebemos, seus avanços tecnológicos e os proveitos que deles advém. Eu concordaria totalmente e, ainda assim, não me afastaria do ímpeto ao ócio. Ao contrário, esse é justamente o exemplo que quero trabalhar nesse momento: o fruto do não-ócio.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, a despeito da satanização do ócio por nossa sociedade, é o ócio imposto à força para um número exorbitante de pessoas que dele, em termos, nunca quis desfrutar. As mesmas máquinas avançadas que nesse exato momento invadem os mercados internacionais, e assim retiram o emprego de milhares de trabalhadores, poderiam ver correr seus resultados em sentido inverso. Fico absolutamente perplexo ao notar como ninguém se espanta com o fato de que o avanço tecnológico não é empregado para que trabalhemos menos, mas, ironicamente, para que trabalhemos mais por menos.

Lanço o desafio: aquele que me convencer que é da natureza do homem não utilizar o progresso científico e tecnológico para minimizar nossas tarefas nesse belíssimo planeta, poupar nosso tempo, sendo o certo, por outro lado, sua seletividade extremada, despejando aos incautos mais sofrimento e menos tempo de viver; mais frustração e menos realização; mais cobiça e menos desfrute; mais cinza e menos azul; se alguém me provar ser isso de nossa natureza inata, então, do alto de minha humildade, desço do meu pedestal de ouro e me ofereço até o último dia de minha vida como seu escravo. Para assim ser devidamente dignificado.

Dorme, acorda, se desloca, trabalha, trabalha, come, trabalha, trabalha, se desloca, come, dorme (sonha?), acorda, se desloca, trabalha, trabalha, come, trabalha, trabalha, se desloca, come, dorme...

O fruto do não-ócio é para poucos. E é para raros. A maioria repete o mesmo ritual diário e recebe em troca apenas o suficiente para continuar em sobrevida. Mas então, com quem fica o fruto do não-ócio? Fica por aí, concentrado no bolso de poucos. Mas só no bolso. Muitos desses poucos, de tão tontos, nem ao menos gozam de todo ócio que o fruto do não-ócio pode lhes proporcionar. Também eles dormem, acordam, se deslocam, trabalham, trabalham, comem, trabalham, trabalham, se deslocam, comem, dormem... e não sonham. E o que fazem, fazem pelo prazer de serem mais. Fazem pelo prazer de serem o que não são, pelo prazer de terem o que não tem, pelo prazer de não ter prazer.

Se aquelas mesmas máquinas avançadas, que nesse exato momento invadem os mercados internacionais, e assim retiram o emprego de milhares de trabalhadores, trabalhassem agora para nós, a todo vapor, de modo que a vida se limitasse à contribuição individual de cada um para o todo, e que essa contribuição, qualquer que fosse, fosse mínima e encarada tão somente como uma contribuição... se essas máquinas assim trabalhassem, e a vida assim fosse vivida, por que haveria eu de querer ser médico e não varredor? Não pensaria duas vezes em ser varredor, posição muito mais vantajosa e, quem sabe, disputada, nesse cenário. Ainda não está claro?

Tudo o que quero dizer é que a vida poderia funcionar como uma imensa “aldeia indígena high-tech”, trabalhando-se o mínimo possível, sempre em prol do grupo, de forma que todos se envolvessem, mas, ao mesmo tempo, se encontrassem livres boa parte do tempo para desfrutar da vida. A tecnologia trabalhando para o homem, individual e coletivo, transformaria a vaidade em uma penitência, já que ninguém mais poderia se vangloriar da posição que ocupa. O cargo, a função, a tarefa, a habilidade, a paixão, a força, a sagacidade, a técnica, tudo, operaria em prol do conjunto e assim seria encarado.

O encanador seria alguém tão importante quanto o engenheiro para o funcionamento do todo. O músico tão importante quanto o matemático. O varredor tão importante quanto o médico. No entanto, o varredor, depois de cumpridas suas 2 horas de trabalho, estaria livre, enquanto o médico, por seu dever ontológico, nem tanto. Ser o varredor, nesse caso, consistiria em ocupar uma das posições mais ilustres dessa sociedade imaginária, na medida em que sua mente, livre mesmo enquanto trabalha, desafoga-se mais rápido da obrigação que presta ao todo, restando-lhe o verdadeiro sentido da vida, que é puro e simples: viver. Por isso gostaria mais de ser varredor que ser médico. Para essa sociedade, que cultivaria o ócio institucionalizado, e sem culpa, eu me daria por inteiro, durante as tais 2 horas de trabalho, e seria, sem dúvidas, o melhor varredor que pudesse. E é por aqui que começa o contrário do meu não-ócio.

Só para lembrar, a respeito daquela coisa toda de “aldeia indígena high-tech”, que a principal queixa – e com razão – dos colonizadores europeus sobre os índios era sua indolência. Seu ócio despudorado. Infelizmente, os índios eram civilizados demais para serem compreendidos...

Creio que meu honrado leitor começa agora a perceber os rudimentos de minha concepção de ócio. Como disse, seria impossível descrever o nada sem antes mencionar o tudo. Devo confessar, no entanto, que o título desse tópico só é o que é por conta de uma mera questão de estética literária. Caso esse parnasianismo obsessivo me abandonasse por um momento, e assim desse lugar às coisas tais quais eu realmente as vejo, bastaria tê-lo acrescido de uma pequena reta, com ângulo de 45 graus, inclinada para a direita, na letra “e”, para assim traduzir de uma só tacada toda esta lengalenga: vida é ócio.

Acima do trono dos imperadores chineses, lia-se em um painel a seguinte inscrição: “Não aja”. Confúcio, seu principal filósofo, dizia que “aquele que governa um povo dando-lhe o bom exemplo é como a Estrela Polar, que permanece imóvel enquanto todas as outras se lhe movem em torno”. Pois bem, as virtudes do ócio começam por aí. Sou um entusiasta do ócio aristocrático, tão entusiasta que não concebo a vida de forma outra que não a de uma aristocracia global, uma aristocracia do Homem sobre a Máquina. E isso não é minha opinião exclusiva, ainda que minha versão se traduza de forma um tanto mais alegórica e radicalizada – a iconoclastia é outra obsessão...

Também os filósofos gregos consideravam que apenas eles, os filósofos, teriam capacidade de governar, pois uma vez que, dedicados ao ócio, livres das garras do mundano, entregues ao pensamento, à reflexão, à observação, seriam, assim, os únicos dotados da verdadeira sabedoria, que se traduz, nada mais, nada menos, na proveitosa sensibilidade social e no autoconhecimento que somente o ócio é capaz de fazer brotar. Também Karl Marx o disse, só que de forma tão complexa e visceral que pouco se nota em semelhança.

Aliás, o bom e velho Marx também deve ao ócio grande parte de seu êxito. Ou melhor, deve a Engels, que oportunamente o propiciou ao amigo. E também foi um amigo quem me disse certa vez sobre uma tribo qualquer na Índia, cuja função do líder se resumia na desgastante tarefa de fumar ópio e emanar boas vibrações para os seus. Como a ilha foi devastada pelo Tsunami, creio que o tal líder tenha fumado ópio de menos ou, talvez, até trabalhado um pouco...

O fato é que somente pelo ócio, seja ele produtivo ou não, o ser humano é capaz de se conhecer verdadeiramente bem e, com isso, também conhecer seus pares e para eles se entregar. O ócio ao qual me apego não é sinônimo de apatia, de desmotivação, de estagnação. Essa é a face real do não-ócio, tal qual o concebemos atualmente. Repito, essa é a face real do não-ócio, tal qual o concebemos. Ele sim, o não-ócio, é o grande agente da apatia, da desmotivação e da estagnação, pois preenche de atividades vazias e sem retorno um tanto de mentes que, do contrário, poderiam dedicar-se à paixão criativa daquilo que nunca vieram a descobrir.

O ócio de que falo é a vida. Pois a vida são pessoas, e lugares, e emoções, e sol, e chuva, e lama, e música, e arte, e livro, e filme, e beijo, e sono, e riso, e choro e tantas outras coisas, submetidas a níveis tão diferentes e possíveis de interação, que somente possuindo bastante de tempo para ela, ócio suficiente para entendê-la, é que se chega a amá-la e assim compreendê-la um tantinho. Pergunte ao trabalhador boliviano, ele sabe do que falo.

Mas não tente o mesmo com um advogado bem sucedido. Ele é tão desprovido da vida quanto o trabalhador boliviano pois, ainda que goze de momentos fugazes de felicidade e ostentação, jamais chega a entender que a vida são pessoas, e lugares, e emoções, e sol, e chuva, e lama, e música, e arte, e livro, e filme, e beijo, e sono, e riso, e choro e tantas outras coisas. Isso, para ele e para muitos, é o lado corriqueiro da vida. Infelizmente, eles são muito incivilizados para compreender...

16 comentários:

Anônimo disse...

Ai, Di...

Mim Gahyva;
Mim ser dependente do ócio.
Mim ter espírito de jibóia...

Esse seu texto me lembrou um artigo do M. Sahlins denominado "A primeira sociedade de afluência". Conhece? Em caso negativo, caia dentro - você vai adorar.

Só uma crítica ao texto: natureza humana, não! Isso é coisa ou de crente, ou de liberal safado que quer provar que somos todos, naturalmente, indivíduos egoístas que agimos guiados exclusivamente pelo nosso auto-interesse.

Beijos silvículas.

Diogo Lyra disse...

puta-merda, como só agora fui descobrir que sou um liberal safado?!

4rthur disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

o trabalho danifica o homem.

Anônimo disse...

Menos, Diogo...

Por enquanto, eu apenas o chamaria de safado.

Mas isso é elogio...

gigi disse...

A minha falta de tempo pro ócio na acepção latina da palavra me dói por 500 motivos, até por coisinhas pequenas como sustentar meu blog. Adoraria cinco minutinhos de alegria pra poder escrever todos os dias. Mais especificamente, pra tentar escrever humor. Hoje, pelo menos, consegui ler o texto inteiro e mandar o link pra uma cabeçada. E consegui resgatar na minha cabeça os conceitos de trabalho, labor e ação da Hannah Arendt, mas depois de 12h de trabalho, meu bem, não vai dar mesmo pra escrever algo decente aqui. Beijinhos.

E eu o chamaria de safado e de abandonador.

Bruno Padron Porpetta disse...

tô na perspectiva do triunfo do ócio, mais maquinas, mais tempo para pescar.

Henrique Santos Pakkatto disse...

Eu acho que vou inventar um algoritmo que responde aos textos geniais dos blogs que freqüento.
Mas, pensando bem, isso iria dar tanto trabalho que estragaria esse meu delicioso tempo de ócio. Ócio? Como ócio se me obrigo a ler. Como me obrigo se tenho prazer na leitura? Como tenho prazer na leitura se ela me é necessária?... Vício?
Acho que vou inventar um algoritmo para evitar a confusão durante meus momentos de vício. Porque o ócio, amigo Diogo, como o Acre, não existe.
A natureza humana é o trabalho. Castigo divino eficaz como o da Torre de Babel. Ainda que sejamos iludidos pelo conforto obtido a custa de muito trabalho, continuamos nos reinventando e assim, reinventando nosso trabalho.
Quiçá veremos nosso trabalho reduzido a um pequeno celular onde teríamos apenas que apertar o botão para fazer o mundo girar.
Vou inventar um algoritmo para pensar ter mais tempo para pensar. Porque se pensar a liberdade é o ócio tem muita gente com preguiça por aí.

Anônimo disse...

Querido amigo de alma e corpo apresionados...

Saiba que adoro o que você escreve, mas, como esse "fala que eu te escuto" me lembra sempre um divã, pensei...será que meu adorável amigo Diogo, está escrevendo sobre o Ócio para liberar toda sua raiva contra o trabalho de tese que não o permite continuar a esculhambar tudo que vê pela frente nesse louco espaço?

Beijocas

Anônimo disse...

Nossa Diogo, além de escrever muito bem você também é um filósofo! Só posso lhe dizer que penso o mesmo a respeito do ócio...
ps: que surpresas você ainda guarda para nós?!
:)

Anônimo disse...

de fato, como poderá o homem dedicar-se à paixão criativa, fazer simples descobertas sobre si e além, na estagnação do não-ócio?
de qualquer forma, viva esse advogado que teve a lucidez de levar a internet ao cárcere do injustiçado diogo lyra, pra que nós de nossos cárceres privados possamos desfrutar e discutir o belo ensaio.
belo mesmo.
;)

4rthur disse...

É foda vivermos num mundo que valoriza os negócios, que são, objetivamente, a negação do ócio.

Novamente, uma adaptação do vocábulo inglês "business", um substantivo que expressa o "estar ocupado" (busy).

Anônimo disse...

Muito muito foda...

Samantha Abreu disse...

isso hoje me coube como luvas....
vc nem imagina!

forte como nordestino é?! eu jamais suportaria aquele sol... calor... suor...
rsrrsrsss
minha força não é tanta!
beijoooo

blah disse...

Diogo

Excelente seu texto! Adorei! Falou com classe, estilo, filosóficamente riquíssimo, consegui botar pra fora muita coisa que anda pela minha cabeça... Acaso usa seus momentos de ócio para exercitar a telepatia?

Pergunta: Posso reproduzir seu texto no meu blog? Citando a fonte e botando o link, é claro...

Abraço

Anônimo disse...

Eis um resumo do livro O CAPITAL ...bom resumo por sinal.