quinta-feira, abril 05, 2007

Contos de Quinta...


A Ilha de Papacu e a Prodigiosa História
do Nascimento do
Santo das Botas Gastas




O engraçado é que a Ilha de Papacu nunca foi uma ilha, ao menos se considerada a partir dos critérios e padrões estabelecidos pela geografia moderna, cujos parâmetros científicos, ignorados antes mesmo de serem pensados e naturalmente estabelecidos, pouco foram aceitos, já que desde a chegada dos primeiros colonos europeus, quando então a ilha não se sabia ilha e sequer Ilha – uma sábia época na qual não se pensava em coisas tão descabidas –, naqueles tempos antigos, tão antigos que o passado, nesse tempo, era ainda uma saborosa novidade; nesses tempos passados em que, pela juventude mesmo do mundo, ainda não era possível aos homens determinar com precisão o limite das coisas; desde então, quando enfim a ilha nasceu para o mundo e dele recebeu seu batismo, batismo batizado com a mesma água salgada que lhe cercava e compunha, como fosse seu útero natural e eterno, a placenta na qual se formou e retira, ainda, seu sopro vital; nessa época imemorial da qual realmente pouco se tem de registro, mas registro outro que não o contado, e que falado não é escrito, desde então, por tudo e mais um pouco, Papacu foi considerada ilha e, como desconsiderasse diferenças entre presente e passado, sobretudo a distância que os separava, permaneceu e permanece ilha, e como Ilha será narrada – pois nessas terras temperadas, misteriosamente, bem eu sei, não havia lugar de partida, caminho do meio ou linha de chegada, ponto cardinal que fosse, bússula mais moderna e precisa que, se devidamente regulada e bem seguida, não indicasse tanto ao desorientado quanto ao incrédulo, ao sujeito são ou aos que são da pá-virada, um lugar de areia fina, de verão eterno, eternamente banhado pelo mar, e maliciosamente ignorante do inverno.

Ilha ou não, de acordo com alguns “especialistas”, no quê não se sabe direito e que a despeito disso respeita o omisso de todo jeito, os chamados doutores, portadores de diploma, os quais a humildade com restrita verdade bem rápido põe à lona (que pífia tomba em seu combate, e golpeada com efeito, no primeiro soco então se abate, pois o que lhe atinge a face, e contudo dói mais no peito, é a mão do anel de formado, a contundir por inconformidade quem lhe recusa respeito), com científico atestado, comprovavam sorrateiros, com os estudos nos quais são formados, por universidades do estrangeiro, e com estes garantiam ao final, afirmar sem se preocupar, que Papacu, como era notório, se deitava sobre um vasto território, “continental” – falavam sem medo e alheios ao zelo, pois era a ciência quem lhes falava e não falhava, coisa e tal. Os números que denunciavam suas gigantescas proporções, quando foram apresentados ao povo pelo afamado conspirador, informavam, para surpresa geral, que para cruzar toda a extensão de suas terras, seja de carro, seja de trem, para fazê-lo, se assim o fosse, eram necessários muitos e muitos dias, tantos, que nem rogando ao Santo das Botas Gastas – eles disseram – conseguia-se percorrê-la contando somente com a ajuda das próprias pernas. Seus habitantes, entretanto, nunca acreditaram nessas bobagens, pois eles, mais do que ninguém, sabiam bem que, com apenas algumas horas de caminhada, sempre antes das seis ou depois das oito, era possível cobrir Papacu de ponta a ponta, com hora marcada, conferida em justa conta, e caso quisesse uma parada, se ao viajante assim conviesse, em qualquer casa havia preparada, sem que à ninguém fosse surpresa, uma boa chícara de café e um delicioso bolo de fubá na mesa. Diz-se, a respeito disso, que no primeiro, último e único censo de Papacu, quando então os homens do Estado ainda engatinhavam na arte de calcular a sociedade, e por isso mesmo fantasia e verdade pouco se diferiam em conteúdo, e esta é a mais pura verdade, o Funcionário designado para realizar a tarefa pioneira, sem perder a compostura e tampouco a estribeira, veio a suspender, após seu primeiro dia, os próximos dias de trabalho, interrompidos com razão, pois o pobre homem relatou, não sem muitos detalhes, por sinal, em demasia – tendo em vista uma conclusão já tão concluída por uma quantidade imensa de pessoas pouco instruídas – que, para ele, ou os habitantes da Ilha eram todos incrivelmente parecidos, ou, pelo milagre da Virgem de Todos os Dias, só com sua bênção e só assim, ele, o Funcionário responsável pelo censo, um quase sexagenário de octagenário bom senso, conseguiria percorrer o país inteiro, em apenas cinco horas de batente, tendo memorizado as feições e respectivos nomes de cada gente, um caso extremo e, em todo caso, muito diferente – tal qual é diferente um chinês para o ocidental, mas diferente sendo igual a todos os outros igualmente diferentes de sua amada terra natal, o que, ao final, resulta em algo normal para todos aqueles que diferentes, são normalmente tanto chineses quanto papacunianos.

Porém, naquela mesma ilha ensolarada, ainda que constatada, sempre que percorrida, a pequena distância percebida entre um destino de chegada e qualquer ponto de partida, isso não significava que, em última instância, em ocasiões determinadas, naquelas viagens de extrema relevância, quando as portas do Palácio eram o objetivo final da jornada, nessas raras ocasiões, nessas peregrinações específicas, as chances de se chegar ao Palácio eram tantas quantas são para o míope ou à tísica, em imaginária empreitada, deparar-se com a última flor do Láscio, observada a estatística; logo, por mais que se tentasse, se não fosse uma sorte de aura quase mística, de um evento ou uma data solene, de alegre e respeitável porte, essencialmente festiva, enfim, se não se tratassem daqueles momentos nos quais, justamente pelo clima de festa e de infesta descontração, e por isso mesmo, da supremacia do vinho sobre o pão, tornava-se impossível o pensar ou mesmo o lembrar de coisas tão sérias (falar às Autoridades? Mas que pilhéria!), e com salvo-conduto os homens de poder aos quais reputo, quase perto do povo, faziam ar de caridade, e dedicavam-lhes uma saudação; não fosse assim e somente assim, então, para os pobres peregrinos que tentavam chegar ao Palácio, maior que fosse sua determinação ou constituição física, pobre miserável ou saúdável infeliz, mesmo à cavalo ou carro de boi, todos e para todos que continuavam a insistir e caminhar, a caminhar e persistir, o chão a ser vencido não acabava nunca, todo o esforço se fazia em vão, e toda força se supunha esvair. O resultado infalível, confirmado sempre que posto à prova, não podia ser outro que não uma resignada volta, uma presumível retirada, que confirmava sem revolta – talvez imperceptível luto – que quando punham-se ao caminho de casa, o trajeto que então se apresentava era infinitamente mais curto. Em Papacu, sem exceção, todos eram testemunhas desse fato, certo como dois e dois não dão três, pois somados nos levam ao quatro, porém juntos, ao se pensar de imeditado, coisa que a despeito só se pensa depois, sei que por outro caminho ainda recuso o três, cede a vez o quatro, e assim chego ao vinte e dois.

Inclusive, conta-se na História Contada da Ilha, um caso passado no amanhecer dos tempos, sobre um pescador e sua filha doente, que desacreditada por médicos e pais-de-santo, perdida do corpo e do espírito, com glóbulos brancos inativos e um permissivo anjo indolente, levou seu pobre pai a fazer promessa para a Virgem, à quem suplicou cessar o inconveniente. Como naqueles tempos de outrora as coisas ainda eram muito novas, e por isso mesmo eram tempos de fartura, inclusive fartura de tempo, os milagres eram bem mais fáceis de se conseguir, já que os santos que desembarcaram na Ilha junto aos primeiros colonos europeus, por estranhamento e falta de intimidade dos homens daquele lugar para com eles, ainda não tinham tantos pedidos, tantas vozes a serem ouvidas, e por isso mesmo eram mais atenciosos e precisos, e com seu público cativo, então, dizia-se, eram bem menos comedidos. Dessa forma, pode-se dizer que surpresa mesmo não foi o evento milagroso em si, quando então a jovem filha foi vista dançando, sadia e bronzeada, por entre as flores de seu jardim, para alguns bem assanhada, mas enfim, surpreendeu a ousada promessa do pescador, que jurou, caso fosse atendido, caminhar até o Palácio e exigir das Autoridades menores impostos para os devotos da Santa, e por semana mais dois domingos. Nunca mais se ouviu falar do pescador, nem ninguém parecia tê-lo visto em sua peregrinação, desde há muito e até então.

Desgraçadamente, dezenove anos depois, com quase um quarto de vida em atraso – e falo o que falo por conta do caso, onde o triste desfecho vem do grotesco relato, que não voltando o velho, e à Virgem por conta disso irritado, pelo rancor da Santa eis que seu crédito acabou decaído, e passou-se que o Velho, como por todos era conhecido, ou fato presumido, já que assim se conta, foi pelos Céus abandonado, à velhaco foi reduzido e seu destino amladiçoado; da causa não há mistério, já que o conjurado revertério do impropério divino deu-se por não ter o velho voltado, e conforme fora combinado, quando exaltado e combalido, à Santa tinha jurado, e em prantos prometido, aos devotos menores impostos, e aquilo de mais desejado, porquanto o povo havia esperado, ver o velho trazer consigo, a pesar no seu ombro enrugado, os felizes tais dois domingos, por semana três feriados; o caso teve por conseqüência uma Santa Vingança, que na falta absoluta da Divina Clemência, fez morrer a filha tempos depois, deixando com sua lembrança um povo deprimido, que digo ao pé do ouvido, de fato nunca se recompôs, ao ver que a menina enquanto dançava, dançava uma vida que já se acabava, que o corpo ondulava por já consumido, flutuava seu prazo de vida, que de súbito expirava, com o último acorde vencido –, sabendo do povo revoltado, interpelados sobre o ocorrido, por carta as Autoridades noticiaram o esperado, e lamentando o velho perdido, avisaram que “dentre as centenas de cidadãos que lá chegavam todos os dias para ter com as Autoridades, e eram muito bem recebidos, diga-se de passagem, infelizmente, dentre todos, nenhum deles era o velho pescador, nem nada se sabia de sua viagem”. Como nota a princípio curiosa, depois histórica, e finalmente cosmológica, desse momento de tristeza e dor, primeiro do pai pela filha e logo da filha pelo pai, e enfim, de todo o povo pelo pai e pela filha, devo registrar, com o orgulho de um devoto e votos de solidariedade, que o esforço do velho acabou por ser recompensado, resultando por fim canonizado, pouco tempo depois, com a Santa se reconciliado, e sentado ao seu lado para sempre então se pôs. E assim foi que, constatados alguns milagres que ninguém conhecia – mas que aprovaram, multiplicaram e, por fim, aumentaram – para evitar descontentamentos e possíveis revoltas, o velho pescador recebeu por seus feitos heróicos uma auréola de ouro, e como ente superior, passou a ser o protegido da Virgem, e enteado de Nosso Senhor – conforme assim se conta, por aquelas terras vastas, onde o Santo das Botas Gastas é recebido com louvor.

7 comentários:

Anônimo disse...

Nossa Diogo, gostei muito do seu conto de hoje. É um texto tão dífícil quanto impressionante...
Beijos.

Cascarravias disse...

Vou-me embora para Papacu, pois lá sou amigo do rei.

4rthur disse...

Desde a primeira vez que li, sempre achei que mergulhar no texto de Papacu é tarefa pra lá de hercúlea. Espero que a continuação da saga seja aqui publicada.

blah disse...

Putz, lyra, que texto difícil! Bem sabes que sou admirador de teu estilo lírico, mas se permites críticas construtivas, neste firulastes por demais...

Anônimo disse...

Concordo em termos com o comentário acima. A idéia das rimas é genial, a pontuação parece texto do José Saramago, só que a junção de ambos os elementos no mesmo texto tornou a leitura osso-duro-de-roer. Li duas vezes e somente na segunda vez eu acho que entendi a história direito...

Diogo Lyra disse...

Pois é galera, esse é um texto não muito digerível, eu sei bem...
O lance da escrita, sobretudo aquela publicada em um espaço virtual, acessível ao "grande público" - leia-se alguém mais que seus melhores amigos - tem esse objetivo mesmo, qual seja, o de experimentar e ver os temas, estilos e narrativas que dão certo ou não.
Este conto é, na verdade, uma edição vagabunda de um projeto maior, um romance, a bem da verdade, chamado "A Ilha de Papacu". Obviamente inspirado nas construções literárias de Saramago (como sagazmente lembrou o Marcos) e Vargas Llosa, tentei realizar nele um resgate dos textos orientais, nos quais prevalece uma espécie de "prosa rimada" - como é o caso do livro "As Mil e Uma Noites".
A história retratada aqui (Santo das Botas Gastas) é um fragmento desta narrativa ainda em estado cru e não revisada. As opiniões foram mais que produtivas, sobretudo a do meu bom e velho camarada Revolution 9, pois atentou para exageros já percebidos (e temidos) por este que vos escreve.
Os papacunianos agradecem, mas o Santo das Botas Gastas ficou sentido e promete não voltar com os tais 2 domingos por semana...
Abraços!

Obladi-Obladá disse...

rapaz, fantástico
o santo que faltava às minhas preces!