quinta-feira, julho 12, 2007

Contos de Quinta...

Dulcinéia

Na cidade feia e suja armada de concreto e cinza andava um homem igualmente feio e sujo, concretamente cinza, ziguezagueando invisível por entre esquinas, crimes e dramas alheios. Seus olhos fundos de perdição diziam muito mais sobre si mesmo que os lábios purulentos e a língua fétida de álcool e maledicências poderiam revelar sem trair, com palavras desconexas, a razão de seu degredo.

Certamente nenhum folhetim jamais tratara assim de seu mal e justo por isso eram poucos, talvez nenhum, os capacitados a reconhecer naquele dejeto humano o retrato em preto e branco do amor, marcado em seus contrastes de claro e escuro pela desilusão irreversível do abandono. Não, não havia espaço para sua história no colorido pastel do romantismo nem sombra que encobrisse sua forma distorcida de culpa e falta pela mulher perdida. Encontrava-se em um beco sem saída e, assustando os gatos, foi ao chão tamanha era a loucura.

Era um pedinte, sobretudo de emoções. Após perdê-la, no segundo posterior, já percebia sua vida declinando e, como soubesse de um antes e depois derradeiro, via seu futuro supostamente vibrante escorrer por entre os dedos em uma mistura fugidia que congregava falta de vontade e falta de razão. Como de fato se provou, o desleixo por si mesmo levou o dito homem a uma extrema solidão que, ironicamente, estava submersa em um mundo de transeuntes, automóveis e hostilidades no qual sobrevivia a esmo.

Entre buzinas, xingamentos e palpitações, a metrópole urbana parecia compor a trilha sonora de sua vida como uma ode aos caos na qual imperava, entre agudos ferinos, o tom grave da ausência e da falta de sentido. Vez por outra, quando via singrar em pleno céu a lua dos namorados, escutava o nome de sua amada nos assovios noturnos do vento e pensava ser ele o verdadeiro cantante, em busca de versos que levassem até ela sua voz melancólica e sua mensagem de perdão.

Foi quando acordou subitamente e não acreditou que tudo tivesse sido apenas um sonho e que a mulher era sua, outra vez. Uma onda de adrenalina invadiu aquele corpo dolorido enquanto uma onda de alegria dilacerou aquela mente embotada pela tristeza e confusão. Levantou-se eufórico e, cantarolando o nome de sua eterna amada, pôs-se a caminhar pela avenida na direção de seu destino.

Para ele o momento era de regozijo, de alívio e, sobretudo, de reencontro consigo mesmo. Para os transeuntes habituados com o local, contudo, era apenas mais um dia no qual o mendigo maluco acordava e saía pelas ruas gritando o nome "Dulcinéia".


20 comentários:

4rthur disse...

A melhor das frases pra mim foi essa:

"Vez por outra, quando via singrar em pleno céu a lua dos namorados, escutava o nome de sua amada nos assobios noturnos do vento e pensava ser ele o verdadeiro cantante, em busca de versos que levassem até ela sua voz melancólica e sua mensagem de perdão."

Pobre homem cinza.

ps - pode parecer exagerado, ainda mais vinda de um amigo e, portanto, de um sujeito sob suspeita, mas algumas passagens me remeteram a Dostoievski, em razão da sensibilidade para com o chamado mundo underground (uma coisa meio Notas do Subsolo, ou mesmo Crime e Castigo), enquanto outras, como a frase supracitada, aludem ao delicioso realismo mágico, estilo literário que nos é tão caro.

Unknown disse...

Belíssimas imagens rapaz...

gigi disse...

O Arthur escreveu o que eu pensei em postar.

Amo. Muito bom, Dig!

gigi disse...

Quando você vai beber uma cervejinha comigo?

Roberta disse...

Já eu imaginei que a questão da loucura e o nome Dulcinéia remetiam ao "D. Quixote", mas em todos os casos são ótimas referências e lembranças...

Tchello Melo disse...

Entre o desejo e o desespero
Dulcinéia se despede na estréia
aqui, acolá, alhures
em ondas longas de devaneio,
uma recôndita idéia
alheia aos transeuntes.

Marcelo Holecram disse...

Oi sr. Turco


agora eu estava analisando e usei seu nome levianamente nos comentários do meu blogue - I mean: eu pûs palavras na sua boca (ao invés desse bigodinho de virilha)... foi mal, malíssimo !!!

Diogo Lyra disse...

Olá Sr. O Último Carioca.

Gostaria de dizer que o Sr. Turco do Bigode responde somente nos dias em que publica sua coluna "O Bom e Velho Heterossexual Masculino".

Contudo, na qualidade de fundador e faxineiro deste blog, gostaria de lhe tranquilizar sobre a utilização da referida alcunha em seu blog, com pretextos levianos.

Tenho certeza que o jovem Omar Kassin - mais conhecido como Turco do Bigode - retribuirá sua gentileza e lhe oferecerá algo novo para pôr em sua boca!

Não tema jovem, internet está aí para isso mesmo e não há nada para se desculpar!!!

:)

Anônimo disse...

Um salve aos contos de quinta!

Vivi disse...

Puxa, uma hora dessas você vai me fazer chorar, viu...

Anônimo disse...

mas quando eu estava quase superando a marca, me cortaram da equipe!

Anônimo disse...

Somos todos mendigos metafóricos mesmo, Digas...Muito bom.

Anônimo disse...

LINDISSIMO.

Fabrício Fortes disse...

dulcinéia se vai. depois volta. e se vai de novo. e...
d. quixote continua sendo o mesmo mendigo cantarolando pelas ruas enquanto sancho pança tenta lhe arranjar um cigarro com os transeuntes..
muito bom conto, Sr Lyra..

4rthur disse...

estarei eu bêzabo ou o Ledas passou por aqui?

Anônimo disse...

primeira vez que vejo o fundo de quintal literário, muito bom sr lyra, parabens pelos escritos, e mais ainda pela dinâmica do site. O turco de bigode é sensacional!! Este conto do post não é meu preferido, prefiro seu humor ao seu lirismo, de fato, mas sim, interessante a idéia, e executada de maneira igualmente interessante. Voltarei.

Anônimo disse...

quanto aos posts anteriores, alto lá rapaziada, comparar com dostoiévski ou cervantes é forçar a barra legal, hehehehe
Menos, menos...

Diogo Lyra disse...

Liga não Baco, isso é propaganda paga...

Ah, muito obrigado pelos comentários e espero vê-lo por aqui novamente.

Abração!

Samantha Abreu disse...

eita!
cada vez melhor...

beijo beijo

Unknown disse...

Pensei em vários comentários, mas sua genialidade já pensou no melhor de todos para mim : pode crer!