quinta-feira, julho 19, 2007

Contos de Quinta...


O Homem Insólito

Quando nasceu já veio ao mundo com a missão de vencê-lo. Talvez fosse essa a razão de sua baixa estatura, atrofiada pelo peso de Atlas que era, sem dúvida alguma, a carga dessa insana responsabilidade depositada sobre seus ombros esquálidos. Tinha pernas, braços e cabeça atrelados ao tronco tanto quanto tinha a mente e seus cinco sentidos atrelados ao coração.

Nunca foi puro, porque nada nessa vida é uma coisa só. Especialmente nunca esteve só e, a não ser quando refletia sobre o mundo hostil a ser dobrado por ele, jamais considerou caminhar acompanhado apenas por sua própria sombra. Tinha amigos sinceros e inimigos dissimulados. Aos últimos se entregava para o combate totalmente desarmado, se deixando golpear por pena que sentia das mesquinharias e inseguranças alheias. Dos primeiros, porém, era refém confesso; a tal ponto que mesmo carinhos por vezes lhe feriam no rosto.

Como todos, via o mundo com seus próprios olhos, mas como poucos, ele avançava com suas próprias pernas na direção do mundo. Enquanto seguia, porém, jamais teve certeza se o mundo lhe dera tudo o que tinha ou se fora ele mesmo quem arrancara do mundo as suas necessidades e superficialidades vitais. Tinha convicção, porém, que cada passo dado seguia na direção que ele mesmo traçara. Ainda que com isso tivesse que pagar o preço das sinuosidades do percurso, sabia que quando olhasse para trás, contemplando os atalhos e desvios do trajeto, muitos seriam aqueles aos quais deveria agradecer. Ninguém, no entanto, que pudesse lhe cobrar dívidas.

Era um homem livre.

O mundo, da forma como o via, era romântico em suas miudezas. Ele, verdadeiramente miúdo, imaginava, portanto, também ser visto dessa mesma forma. Na forma como concebeu o mundo para o qual foi concebido. Na forma como durante tanto tempo procurou se esconder do mundo. Na forma como o mundo, à sua forma, o protegeu de tudo aquilo que temia, quando pensava justamente não temer nada que não fosse o mundo. Por tudo isso, naturalmente, sempre esperou o melhor dos homens e das coisas, como se os homens e as coisas fossem os homens e as coisas que ele via, da forma romântica como via o mundo tanto quanto por ele esperava ser visto.

Quando o mundo se tornara grande e ele ainda mais miúdo, ficou confuso. O que havia mudado não sabia, novamente, se por ele ou pelo próprio mundo. Sabia apenas que, antes mesmo de notar as pequenas modificações, tudo já se tornara estranho, distante, sem foco. Seu romantismo, seus sonhos, sua missão, tudo havia se apequenado, se tornado duvidoso e, enfim, rarefeito.

Mas o que havia mudado no mundo, senão a forma como ele o concebera? E mudada a forma do mundo, como haveria ele de modificar sua própria forma e lugar no mundo? E mudado o homem, mudado o mundo, ou, mudado o mundo mudado o homem? Fosse o que fosse, o que mudar quando tudo muda?

Era um homem deslocado.

Lembrou-se dos tempos em que ainda vestia calças curtas e o mundo era completamente seu. Naquela época repleta de sonhos, mas também de dificuldades, o menino que um dia fora era capaz de dominar o que quer que fosse contando apenas com os recursos de sua imaginação singela. O que ele via, o que sentia, o que sonhava; o que podia, o que sentia, o que almejava; o que sabia, o que sentia, o que criava. Era ele. O dono (do que sentia).

Chegada a noite o calças-curtas experimentava certa angústia. Apagada a luz, disfarçada a forma das coisas, o que era óbvio cedia vez ao incerto e a certeza apenas uma misteriosa sombra a intimidar o calças-curtas encolhido na cama. O medo das sombras, com o passar dos anos, sumiu. Mas o medo perante a dúvida, por certo, o acompanharia das calças curtas ao paletó. Na vida adulta, porém, não havia um interruptor que acendesse a luz de sua segurança e lhe trouxesse de volta a paz e certezas de antes. Definitivamente não.

E de fato, nada mais era como antes, nem mesmo ele. Ele, não se sabendo mais quem, sentia-se como um personagem importado de outro livro, vivendo outro drama, em outro mundo. À deriva. No desconhecido. Contudo, ainda que se sentisse algo de fictício, sabia de sua verdade, de sua realidade. Sabia-se pleno e ardente, por isso vivo. O personagem que lhe fora imposto, portanto, não partia em busca de um autor que lhe conferisse vida e sentido – como numa trama pirandelliana. Seu desejo, como nos tempos da calça curta, era tão somente o de um mundo onde pudesse atuar.

Era um homem insólito.


15 comentários:

Diogo Lyra disse...

Ok, ok, é repetido...

Cascarravias disse...

tem problema não. ajuda a relembrar.

Let's disse...

não tinha lido ainda!
"Nunca foi puro, porque nada nessa vida é uma coisa só."
So true...

Vivi disse...

Por tantas vezes me pego na vã procura do interruptor...
"Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração." (Drummond)

Unknown disse...

Também não tinha lido esse afinal sou nova aqui! Achei muito "lyrico" esse seu conto e confesso até que me reconheci um pouco nele...
Bjs.

Anônimo disse...

Muito bonito Diogo, bem singelo.

Anônimo disse...

belo conto.. me fez olhar pra trás e me ver de calças curtas nas tardes intermináveis de quando tudo isso começou..

Anônimo disse...

Já li e repito: PHODA!

4rthur disse...

vale a pena ler de novo, camarada.

Tchello Melo disse...

Este conto me pegou de calças curtas!

Samantha Abreu disse...

não me lembro de tê-lo lido. Acho que não li, senão não esqueceria.
Principalmente dessa frase:
"Sabia-se pleno e ardente, por isso vivo."
adorei.

Beijos.

Elza disse...

Nossa, que texto mais tudo de bom!!
me adimiei tbm na mesma frase que a pessoa acima citou: "Sabia-se pleno e ardente, por isso vivo."
Perfeita!
**
Estou passando para conhecer vc, que foi indicado para o prêmio blog 5 estrelas, parabéns vc merece!!
=]

Elza disse...

que interessante, eu gostei muito da frase, achei tão verdadeira que acredito ser amelhor forma de qualqer uma se descrever, as circustancias que fazem agente..
Agradeço sua atenção.
=]

4rthur disse...

Meu blog só tem três estrelas, mas damos café da manhã sem acréscimo de tarifa.

Cláudia I, Vetter disse...

Tu é talentoso pra caralho!!!!!!

Sabe usar as palavras da forma mais visceral. Isso é uma virtude que arrancas com os vícios escritos transpondo sem querer muito de mim.

Meus parabéns sinceros, e nunca deixe de continuar; assim, ardente e vivo.

;D