sexta-feira, junho 29, 2007




Desde os tempos mais remotos da humanidade, quando então o homem era menos que um macaco imberbe, a apropriação do fogo é algo de suma importância para a dinâmica e perpetuação de seu modus vivendi. Nesse sentido, se é possível crer em tal afirmativa, outra, desta vez acessória, faz-se imperativa: nem sempre este tipo de apropriação se dá pela via do consenso, isto é, não raro o fogo se constitui em objeto de desejo passível de usurpação por terceiros.

O registro mais antigo de fogo roubado pode ser constatado nos escritos da mitologia grega, mais especificamente, na lenda de Prometeu. Foi ele quem presenteou os homens com a chama afanada do Olimpo, fato que, por sinal, se trouxe boaventurança aos homens, desagradou bastante Zeus. Contudo, a despeito da riqueza e ilustração que traz toda e qualquer reflexão competente sobre as mitologias em geral, diria que é no contexto da modernidade, ou “pós” – como queiram os chatos – que reside o tema central de minha modesta teoria: o fluxo isqueiral.

Analisando a práxis cotidiana de uso do isqueiro, é fácil perceber as nuances que caracterizam seu fluxo. Em primeiro lugar, gostaria de salientar a profunda demanda do objeto em contextos de sociabilidade, sobretudo naqueles em que o ambiente se encontra liberado para a utilização dos fumos mais diversos. Justamente nesses espaços é que o fluxo impõe suas leis naturais com maior força e vigor, tornando a manutenção da pequena peça acendedora uma tarefa tão árdua quanto a empreitada de Hércules, cujos 12 trabalhos representam, prometo, a última referência mitológica que levanto neste texto.

Retomando o tema central, ressalto que a teoria do fluxo isqueiral está pautada em uma única e básica premissa: as interações estabelecidas entre usuários de fogo implicam, quando do uso do isqueiro, em um fluxo constante de apropriação e reapropriação do mesmo. Ainda, que este fluxo não só obedece a leis naturais como também influencia socialmente a aceitação de sua inexorabilidade pelo grupo de usuários em questão.

Desta feita, pode-se dizer que a força do fluxo é capaz de criar nos indivíduos uma espécie de habitus primário no qual a rotatividade do isqueiro é naturalizada a tal ponto que, mesmo que descoberto um destes objetos (outrora perdido) sob a tutela alheia, salvo em raríssimas exceções, o possuidor anterior aceita tacitamente a apropriação do outro. Porém, fato ainda mais intrigante e, sobretudo, confirmador das leis do fluxo, é o irônico resultado que se apresenta, muitas vezes, sob a forma de um novo isqueiro que, aparentemente do nada, vem em substituição daquele perdido na mesma noite.

Como não pretendo esgotar os limites analíticos da Teoria do Fluxo Isqueiral neste modesto ensaio, gostaria de finalizá-lo com uma pequena digressão sobre uma das poucas exceções que desafiam sua imutabilidade. Para tratar deste assunto buscarei na empiria do mundialmente famoso isqueiro Zippo as razões de meu argumento.

Afora o Zippo, todos os demais isqueiros se perdem por conta do falso caráter de instantaneidade que circunda o empréstimo. Na qualidade de bem durável mais propenso ao desaparecimento, esta pequena peça prometeuniana vive o constante perigo do extravio tanto em virtude de sua generalidade tipológica quanto por seu modesto valor de mercado. Já o Zippo, por outro lado, tem sua integridade resguardada por situar-se em pólo oposto ao destas caracterísitcas e, portanto, representa um dos maiores focos de resistência às leis do fluxo. Assim é que, congregando, por um lado, uma especificidade e singularidade próprias de sua estirpe e, por outro, o alto custo relativo a tamanha exclusividade, o Zippo desperta por parte dos pedintes e do detentor uma atenção redobrada e um senso de responsabilidade típicos de uma saudável sociedade capitalista.

Como bem salientei, outros possíveis caminhos encontram-se abertos na Teoria do Fluxo Isqueiral e espera-se que sejam desenvolvidos por novos pesquisadores dentro em breve. Certo é que, por mais sofisticadas que sejam as inúmeras interpretações sobre ele, sem dúvidas a melhor forma de proteger seu isqueiro (sem com isso tentar lutar contra o fluxo) é pedir um outro isqueiro emprestado, ainda que se possua um. Com esta atitude terá garantida a presença de ao menos uma das peças acendedoras, provendo, ao mesmo tempo, suas necessidades humanas e a lei natural do fluxo isqueiral.

16 comentários:

Roberta disse...

Ué, mudou o layout?!
Enfim, como boa fumante reconheço a verdade dessa teoria mas acrescento que eu nunca acho outro isqueiro comigo no fim da noite...
rsrsrsrs

gigi disse...

Cara, eu sempre ando com dois isqueiros dentro da minha estilosérrima latinha. Pois, veja você, os dois desapareceram. Em casa, tenho quatro que não sei de onde vieram, o que só comprova sua teoria.

Acho que essa rotatividade isqueiral se deve ao fato de colocarmos todos, gentilmente, nossos maços e isqueiros na mesa.

Assim como tirar o chapéu para entrar em ambientes fechados e tirar o sapato pra entrar em uma cela de cadeia ou na casa de alguém, botar o fumo e o isqueiro pra jogo é uma atitude que simboliza confiança mútua, generosidade e prazer na partilha.

Esse post veio em boa hora. Ontem mesmo relutava em manter minha caixinha metálica dentro da bolsa e só tirar para acender o meu. Seria uma boa forma de me proteger, mas achei de uma mesquinharia sem fim.

Perdi mais um.

beijos, Dig

p.s.: engraçado, falei tb sobre o Zippo dos Beatles que eu quero... ou um rosa bebê, pra ninguém roubar.

Anônimo disse...

Essa é antiga, né Dioguinho?!
Mas sempre vale a pena ler de novo - mesmo os não fumantes...

4rthur disse...

pois é, brother, tava pensando nela e tentando lembrar há quanto tempo vc havia postado...

sempre vale a pena ler de novo.

Unknown disse...

Hahahaha!!!
Muito boa essa linguagem "acadêmica" versando sobre algo tão banal mas tão verdadeiro!

Vivi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vivi disse...

hahahaha! Tem coisas para as quais a gente tem dificuldades em admitir uma abordagem acadêmica.Isso me fez lembrar uma conferência ridícula que assiti há 2 anos, entitulada "Orkut: o hipertexto somos nós". Daqui a pouco começam a pipocar dissertações e teses sobre o tal do Orkut, parecidas com essa teoria do fluxo isqueiral... rs rs

Vivi disse...

Mas falando sério, depende da seriedade do trabalho, dos objetivos, do tipo de pergunta né...talvez eu esteja exagerando...

Cascarravias disse...

eu continuo insistindo na clivagem de classe embutida no Zippo

Tamires disse...

AS GRANDES VIAGENS
DO SR. LYRA!
RSRSRS

Diogo Lyra disse...

Vivi, veja só como é que são as coisas...

... e se eu te dissesse que já publiquei um artigo sobre o Orkut (textinho que eu odeio, por sinal), junto com meu orientador, na revista Ciência Hoje?!!

A sociologia fala de tudo menina, desde a mudança da garrafa de coca-cola do vidro para o plástico até a construção da subjetividade pós-moderna!!!

É ver pra crer:

http://ich.unito.com.br/49065

obs: eu gosto mais da Teoria do Fluxo Isqueiral...

Vivi disse...

Pois é...por isso eu repensei logo as minhas primeiras palavras sobre o assunto! Valeu!

Samantha Abreu disse...

Ai Diogo... por isso é que deixo de fazer muitas coisas para dar uma passadinha por aqui!
rsrss

beijo!

Anônimo disse...

Tá vendo, Diogo? Já tá interferindo na produtividade alheia!

Diogo Lyra disse...

É Onça, tô sempre fudendo os outros!

Anônimo disse...

vc é ótimo, digs!!!! adoro ler seus textos...